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| - “A Islândia extermina bebés com síndrome de Down mas faz funeral a um glaciar”, sublinha-se no título de uma publicação na página “Notícias Viriato”, datada de 22 de agosto de 2019, que está a propagar-se nas redes sociais. “A Islândia, que aborta quase 100% dos bebés diagnosticados com síndrome de Down, realizou um funeral para um glaciar”, reitera-se no primeiro parágrafo do respetivo texto.
“O glaciar, conhecido como Okjökull ou ‘Ok’, cobria 6,2 milhas quadradas em 1890. No entanto, em 2012, tinha diminuído para menos de 0,3 milhas, e em 2014 os cientistas islandeses decidiram que não estava mais em movimento. Um geólogo islandês, Oddur Sigurðsson, disse à Agence France-Presse que ‘tomámos a decisão de que este já não era um glaciar vivo, era apenas gelo morto, não se estava a mover’. Portanto, cerca de 100 pessoas, incluindo o primeiro-ministro da Islândia, Katrín Jakobsdóttir, e a ex-presidente da Irlanda, Mary Robinson, realizaram uma cerimónia onde o glaciar costumava estar, no domingo, para comemorar a sua morte. Uma placa em inglês e islandês intitulada de “Uma carta para o futuro” foi afixada num afloramento rochoso”, descreve-se no texto. E importa aqui ressalvar que Katrín Jakobsdóttir é uma mulher, primeira-ministra da Islândia e não “o primeiro-ministro”, como é erradamente identificada na publicação em análise.
“De acordo com o Breitbart, Sigurðsson ‘trouxe uma certidão de óbito ao memorial para chamar a atenção para a ‘crise climática'”, prosseguem os autores do texto. E importa aqui salientar que o Breitbart News é um site norte-americano ligado ao movimento alt-right (com ramificações em grupos de extrema-direita) e criado por Steve Bannon, um dos ideólogos de Donald Trump, atual presidente dos EUA, tendo chegado a exercer funções na Administração Trump. Ora, durante a campanha para a eleição presidencial dos EUA em 2016, o Breitbart News publicou várias fake news, com especial incidência sobre os adversários de Trump.
“Curiosamente, no ano de 874, quando os primeiros ‘colonizadores’ entraram na Islândia, não existia o glaciar. Chegaram a esta ilha, as temperaturas na região eram mais quentes do que são hoje. Aliás, a quase vizinha Gronelândia deve o seu nome ao facto de ser então verde e não gelada, como viria a ficar séculos depois”, sublinham os autores, não sem ironia.
A mensagem implícita nesta primeira parte do texto consiste numa espécie de sugestão de negacionismo das alterações climáticas, apesar da crescente consensualização entre a comunidade científica quanto a esse fenómeno. Não por acaso, o Breitbart News publica recorrentemente textos que apontam nesse mesmo sentido: as alterações climáticas são um mito.
Não vamos, porém, analisar essa primeira parte do texto que parece servir apenas de pretexto para a segunda parte, na qual se veicula a mensagem central de uma suposta notícia que se assemelha mais – em algumas passagens e desde logo no título – a um artigo de opinião.
“Mas uma triste ironia sobre o desaparecimento dos glaciares islandeses é que os bebés com síndrome de Down desaparecem regularmente da Islândia. Na verdade, quase todas as pessoas com síndrome de Down são abortadas antes de nascerem. Em 2009, apenas três bebés na Islândia nasceram com a doença genética. Em 2017, nenhum bebé com síndrome de Down tinha nascido lá em cinco anos”, garante-se na segunda parte do texto.
“Em 2017, o Breitbart relatou que um geneticista islandês vangloriou-se da erradicação do síndrome de Down no seu país. ‘O meu entendimento é que nós basicamente erradicámos o síndrome de Down da nossa sociedade, quase não existe nenhuma criança com síndrome de Down na Islândia’, disse Kari Stefansson. Helga Sol Olafsdottir, conselheira do Hospital Universitário de Landspitali, indicou que não pensava que o aborto de bebés com síndrome de Down fosse errado. ‘Não vemos o aborto como um assassinato‘, disse ela. ‘Encaramos o aborto como uma coisa que acabamos'”, concluem.
É verdade que a Islândia “extermina bebés com síndrome de Down”? Verificação de factos.
A publicação em análise da página “Notícias Viriato” consiste numa cópia quase integral de um artigo originalmente publicado na página “LifeSiteNews”, criada por um movimento “pró-vida” (anti-aborto, anti-eutanásia, etc.) no Canadá.
Não obstante, a informação sobre o decréscimo de bebés com síndrome de Down na Islândia pode ser confirmada através de outros meios de comunicação social mais credíveis, nomeadamente uma reportagem da estação televisiva CBS, emitida em agosto de 2017, na qual se salienta que “a Islândia tem em média apenas uma ou duas crianças nascidas com síndrome de Down por cada ano”.
Mas estes números têm que ser contextualizados: a Islândia tem uma população de apenas 330 mil habitantes. De acordo com a legislação islandesa, o aborto é permitido após as 16 semanas de gestação nos casos em que o feto tem uma deformação, estando o síndrome de Down incluído nessa categoria.
De acordo com um artigo de fact-check da “Iceland Magazine”, publicado na mesma altura (i.e., agosto de 2017, em reação à reportagem da CBS), “aproximadamente 85% das mulheres islandesas optam por fazer o rastreio pré-natal”, pelo que cerca de 15% não fazem esse teste e, como tal, “não se verifica uma taxa de aborto de 100%” dos fetos em que é detetada essa anomalia genética, também denominada como Trissomia 21. Mais, “as mulheres não são obrigadas a realizar o teste pré-natal” e o mesmo se aplica à decisão de abortar.
Em suma, a publicação em análise veicula algumas informações verdadeiras misturadas com informações falsas. Por exemplo, ao garantir que “em 2017, nenhum bebé com síndrome de Down tinha nascido lá em cinco anos”. Ora, na reportagem da CBS é indicado que “nasceram dois bebés por ano” com síndrome de Down, “ao longo dos últimos anos”. Ou seja, verifica-se uma extrapolação sensacionalista a partir dos factos conhecidos.
Mais problemática é a acusação difundida no título, segundo o qual a Islândia “extermina bebés com síndrome de Down”. Como se fosse uma política pública do país, um “extermínio” programado de todos os bebés com síndrome de Down, imposto às mulheres grávidas. Algo que objetivamente não é verdade. E tratando-se da mensagem central da publicação, acaba por gerar desinformação.
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Nota editorial: este conteúdo foi selecionado pelo Polígrafo no âmbito de uma parceria de fact-checking com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam naquela rede social.
Na escala de avaliação do Facebook este conteúdo é:
Falso: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
Na escala de avaliação do Polígrafo este conteúdo é:
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