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| - A Federação Portuguesa do Táxi (FPT) e a Associação Nacional de Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros (ANTRAL) emitiram um comunicado na quarta-feira a denunciar a “gestão vergonhosa das multas a que o Estado tem direito”. A posição surgiu como reação a uma notícia da SIC que avançava que 4,6 milhões de euros em multas vão ser perdoadas à Uber e à Cabify devido à entrada em vigor da nova lei.
Após a reação, o presidente da FPT, Carlos Ramos, disse em declarações ao Expresso que esperava que isto fosse acontecer, uma vez que “um princípio do direito penal prevê a aplicação da lei mais favorável face à entrada em vigor de nova legislação”. E acusou os partidos com assento parlamentar de não se terem preocupado com o facto de esse dinheiro já não ir entrar nos cofres do Estado: “Marimbaram-se para isso. Não souberam acautelar os interesses do Estado. Estamos a falar de quase 5 milhões de euros. Não é brincadeira”.
O que está em causa?
Os taxistas acusam, no fundo, os deputados de lesarem os interesses do Estado ao aprovarem uma lei que permite que o Estado não possa cobrar 4,6 milhões de euros em multas. As associações exortaram mesmo os seus membros a entupirem os emails do ministro e do secretário de Estado do Ambiente (que tutelam os transportes) a protestar pela “gestão vergonhosa das multas a que o Estado tem direito”, que se traduzem em “quase 5 milhões em contraordenações passadas ao transporte ilegal de passageiros.”
É, por isso, necessário perceber duas coisas:
- Em primeiro lugar, qual o valor efetivamente em causa: será mesmo 4,6 milhões?
- Em segundo lugar, se o valor é perdoado devido à aprovação da lei, como apontam os taxistas.
Parece certo, neste momento, que a Uber, a Cabify, a Taxify e outras plataformas similares não vão ter de pagar essas multas. Durante meses, aliás, os motoristas receberam ordens das empresas para não pagarem as multas, uma vez que os casos iam ser resolvidos em tribunal. De facto, houve vários processos em tribunal nesse sentido, sendo necessário perceber se eram favoráveis ou contrários a plataformas como a Uber e a Cabify.
Torna-se, assim, igualmente fundamental perceber se o facto das multas não serem pagas é uma consequência da nova legislação ou de decisões judiciais.
Quais são os factos?
Começando pelo valor, as multas totalizam ou não 4,6 milhões de euros? Segundo dados oficiais do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), desde 2016 foram passados 2.297 autos de contraordenação relacionados com o transporte ilegal de passageiros por motoristas ligados a plataformas como a Uber ou a Cabify. Destes, 1.922 foram passadas na zona da Grande Lisboa, 228 na zona do Grande Porto e 197 no Algarve. Ora, a SIC fez as contas e — uma vez que a coima mínima é 2.000 euros — multiplicando esse valor pelos 2.297 autos, as multas terão, no mínimo um valor de 4.594.000 euros. O valor pode, por isso, ser superior. Desse valor, garantiu o IMT à SIC, só foram cobrados seis mil euros.
A Uber, quando contactada pelo Observador, não quis comentar o assunto, mas fonte de uma das plataformas envolvidas não contesta este valor. Contesta, porém, a interpretação dos taxistas de que foi a nova lei que levou ao não pagamento de 4,6 milhões de euros em multas. Ou seja: o valor ninguém questiona. Parece também consensual que o dinheiro acabará por não chegar aos cofres estatais.
O Observador teve acesso a 34 processos (num universo de cerca de 2.000 que decorrem em tribunal) que já foram concluídos nos tribunais sobre as multas aplicadas à Uber. Nesses 34 processos, há 34 decisões — que vão de novembro de 2017 a setembro de 2018 — que são favoráveis à Uber. Ou seja: os tribunais decidiram pelo não pagamento da multa. Os casos são os seguintes:
- 29 decisões na zona da Grande Lisboa, nos seguintes processos: 1028/17.7Y5LSB; 1161/16.2Y5LSB ; 1548/17.3Y5LSB; 25/18.0Y5LSB; 5/18.5Y5LSB; 9/18.8Y5LSB; 125/18.6Y5LSB; 67/18.5Y5LSB ;141/18.8Y5LSB; 193/18.0Y5LSB; 130/18.2Y5LSB; 250/18.3Y5LSB; 166/18.3Y5LSB; 249/18.0Y5LSB; 294/18.5Y5LSB; 251/18.1Y5LSB; 504/18.9Y5LSB; 551/18.0Y5LSB; 518/18.9Y5LSB; 556/18.1Y5LSB; 326/18.7Y5LSB; 494/18.8Y5LSB; 1358/18.0T8VFX; 272/18.4Y5LSB.
- 5 decisões na zona do Grande Porto, nos seguintes processos: 202/18.3Y4PRT; 237/18.6Y4PRT; 231/18.7Y4PRT; 195/18.7Y4PRT; 224/18.4Y4PR
Na verdade, em todos estes processos foi seguida uma linha: a da absolvição da Uber e de plataformas similares, que foi criando jurisprudência favorável às empresas que chegaram há poucos anos ao mercado português. Olhando, por exemplo, à mais antiga destas sentenças, de 7 de novembro de 2017, é possível verificar que os juízes consideram que a Uber não necessita do mesmo alvará dos táxis, uma vez que o serviço por eles prestado é “distinto e inovador do serviço de táxi.”
Os juízes lembravam, ainda, que aquele tipo de atividade ainda não estava regulamentada e que não ignoravam que tinha de ser, mas isso nada tinha a ver com o facto de estarem a circular sem um alvará similar ao dos táxis, tendo a mesma atividade.
Por fim, tendo estes argumentos, os juízes decidiram pela absolvição da recorrente (a Uber) da contra-ordenação feita aplicada pela polícia.
Numa análise à última destas decisões, de 20 de setembro de 2018, os argumentos (e a decisão) dos juízes são praticamente os mesmos. Os juízes voltam a alegar que Uber e os táxis têm atividades distintas. Neste processo, consultado pelo Observador, é alegado que “a atividade desenvolvida pela recorrente em causa não pode de todo ser considerada de transporte público de aluguer de veículos automóveis ligeiros de passageiros, designado por transporte de táxi, porquanto possui características objetivamente diferentes”.
Ou seja: as decisões até agora conhecidas dos tribunais têm dado razão à Uber. E não foi devido à aprovação da lei que regulamenta as plataformas, uma vez que as decisões começaram em novembro de 2017, muito antes da aprovação da lei. Embora 34 seja um pequeno número num universo de 2.000 processos, as decisões vão criando jurisprudência favorável à Uber e plataformas similares.
Conclusão
Os taxistas têm razão quando dizem que a polícia passou quase 5 milhões de euros (em rigor, pelo menos 4,6 milhões de euros) em multas a motoristas da Uber que não vão ser pagas ao Estado. No entanto, estão a deturpar a realidade quando dizem que isso se deve à aprovação da nova lei por parte da Assembleia da República. Há várias decisões (34) dos tribunais a demonstrar que a razão pela qual as multas não são pagas tem a ver com o facto dos juízes considerarem a Uber não presta o mesmo serviço que os táxis, logo os motoristas não estavam obrigados a ter um alvará de táxi — que foi o que motivou a polícia a multá-los. Dizer que os deputados, com a aprovação da lei, levaram a que o Estado fosse lesado em cinco milhões é altamente enganador. Mesmo sem nova lei, a jurisprudência demonstra que as multas, provavelmente, nunca seriam pagas. Por decisão dos tribunais.
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