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| - Na edição de 12 de setembro, o jornal “Expresso” revelou que o primeiro-ministro António Costa e o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, entre outros políticos, integram a Comissão de Honra da recandidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do Sport Lisboa e Benfica (SLB). Ora, estando Vieira sob suspeita de diversos crimes e na condição de arguido em vários processos judiciais, nomeadamente no “caso do Saco Azul” e na “Operação Lex“, além de dívidas e créditos no Novo Banco, multiplicaram-se as críticas públicas a Costa e Medina por esse apoio tácito ao atual presidente do SLB, tendo em conta os cargos de grande responsabilidade política que desempenham.
“Não vou fazer nenhum comentário sobre um assunto que não tem rigorosamente nada a ver com a vida política nem com as funções que exerço ou exerci“, defendeu Costa, no mesmo dia, ao ser questionado sobre a notícia do “Expresso”. Mas esta posição assumida (e, aliás, reiterada hoje) pelo primeiro-ministro não convence os críticos, nomeadamente o líder do PSD, Rui Rio, que comentou logo no sábado: “Sempre achei mal a mistura entre a política e o futebol profissional. No passado combati isso e afastei-me. Hoje até há problemas de ordem judicial metidos nisso. (…) O ideal é que quando estamos em cargos políticos no Governo devemos abster-nos”.
Além da componente de leitura política desta situação, também há quem aponte para uma leitura jurídica do Código de Conduta do Governo, alegando que o primeiro-ministro, ao aceitar fazer parte da Comissão de Honra de Vieira, terá desrespeitado várias normas desse documento. “António Costa está claramente a violar o Código de Conduta do seu próprio Governo”, afirmou João Paulo Batalha, presidente da Transparência e Integridade – Associação Cívica (TIAC).
Confirma-se que Costa na Comissão de Honra de Vieira viola o Código de Conduta do Governo?
O Polígrafo pediu a Batalha para fundamentar a sua alegação. “O Código de Conduta do Governo foi aprovado inicialmente a 8 de setembro de 2016 e reaprovado, com poucas alterações, em 21 de novembro de 2019, para se aplicar ao atual Governo. Surge na sequência da polémica criada pelo caso Galpgate – mais um caso em que a capacidade de sedução do futebol foi usada como forma indevida de gerar simpatias políticas, no caso por parte de uma empresa, a Galp”, começa por contextualizar.
“Importa relevar, para enquadramento da análise, que não é um código de especial qualidade. Pouco mais faz do que regurgitar normas que já vigoravam no Código do Procedimento Administrativo sem – que era o que importava – estabelecer mecanismos concretos para avaliar, em cada caso específico, a adequação da conduta dos membros do Governo e propor medidas de gestão dos conflitos de interesses que surjam em cada situação. É mais uma tentativa de resolver problemas específicos e concretos com regras gerais e abstratas. E é precisamente por causa desta falha estrutural, de base, que o código de conduta se tem revelado inútil na prevenção e resolução, não só deste caso, mas de vários outros que têm ocorrido nos últimos anos”, critica Batalha.
“Dito isto, há vários artigos deste Código de Conduta infelizmente minimalista com relevância para a questão, sublinhados meus:
Qualquer destas normas impõe um dever de distanciamento e prudência na aceitação de um convite para apoiar publicamente uma candidatura à presidência de um clube de futebol – antes sequer de avaliarmos a candidatura em causa, que obviamente também exigiria o redobrar desses deveres de distanciamento”, sublinha.
“Claro que as normas do Código de Conduta especificam que estes deveres se aplicam aos membros do Governo ‘no exercício das suas funções’ – o que é aliás uma redação redundante, dado que o código, por definição, só se aplica às pessoas que exercem as funções no Governo”, prossegue. “A questão tornar-se-ia então a de saber se António Costa aceitou o convite ‘no exercício das suas funções‘. O próprio já afiançou que não – que aceitou o convite ‘na condição’ de sócio do Benfica, escusando-se a mais comentários.
“Ora sucede que, por natureza e definição, o convite para integrar uma comissão de honra só é feito em função da reputação e notoriedade dos convidados – e essa reputação e notoriedade são-lhes dadas pelos cargos que exercem. Dito de outra forma, Luís Filipe Vieira só convidou António Costa para aCcomissão de Honra da candidatura por António Costa ser o primeiro-ministro de Portugal, o que faz com que o convite seja absolutamente indissociável do cargo e, como tal, aceite ‘no exercício das suas funções'”, argumenta o presidente da TIAC.
“Ou o Código de Conduta está objetivamente a ser violado (nas disposições citadas), ou o Código de Conduta é uma ficção, redigida e aprovada pelo Conselho de Ministros apenas para apaziguar a polémica criada pelo Galpgate, mas desenhado na prática para não regular coisa alguma, não prevenir qualquer conflito de interesses ou travar qualquer conduta de favorecimento, proximidade ou promiscuidade entre membros do Governo e interesses externos”, considera João Paulo Batalha, presidente da TIAC.
“De outro modo, estaria aberta a mãe de todas as escapatórias ao Código de Conduta do Governo – bastaria a qualquer governante ‘despachar’ a sua má conduta dizendo ter sido praticada ‘na condição de‘ seja o que for, que não a de governante! Isso obviamente tornaria o código inútil e inaplicável – até porque para favorecimentos praticados por via de decisões do Governo (por hipótese, através de decisões administrativas ou contratos públicos) já há disposições na lei administrativa e penal que as sancionam”, alerta.
“Só podemos concluir que as opções são duas: ou o Código de Conduta está objetivamente a ser violado (nas disposições citadas), ou o Código de Conduta é uma ficção, redigida e aprovada pelo Conselho de Ministros apenas para apaziguar a polémica criada pelo Galpgate, mas desenhado na prática para não regular coisa alguma, não prevenir qualquer conflito de interesses ou travar qualquer conduta de favorecimento, proximidade ou promiscuidade entre membros do Governo e interesses externos ao Executivo”, remata Batalha.
Enquadramento legal e constitucional português
Por sua vez, Catarina Santos Botelho, constitucionalista e professora de Direito na Universidade Católica Portuguesa, também questionada pelo Polígrafo, começa por salientar que “ainda que este seja um caso fronteira, numa análise estritamente jurídica, o primeiro-ministro António Costa não está legal nem constitucionalmente impedido de integrar a Comissão de Honra de um candidato a dirigente de clube desportivo. Todavia e como é normal, fora do contexto jurídico, serão legítimas as mais variadas leituras acerca da pertinência política e estratégica da atuação do primeiro-ministro. Num sistema democrático, os governados possuem liberdade para ajuizar e escrutinar, de um ponto de vista ético, as atuações dos órgãos políticos”.
“O Código de Conduta do Governo procurou densificar as disposições que se encontram previstas no Código do Procedimento Administrativo relativamente às garantias de imparcialidade. O Código de Conduta estabelece uma série de regras pautadas pelos princípios da probidade, imparcialidade, transparência entre outras (artigo 3.º). O Código aplica-se a todos os membros do Governo, pelo que o primeiro-ministro deverá, enquanto membro do Governo, respeitá-lo. O primeiro-ministro não responde perante ninguém com base neste Código de Conduta, pois é o chefe de Governo (artigo 5.º). Poderá somente responder nos termos constitucionais pertinentes. A esta luz, o primeiro-ministro, enquanto chefe do Governo, responde perante a Assembleia da República sobre a execução do programa do Governo ou assunto relevante de interesse nacional (artigos 194.º da Constituição) e perante o Presidente da República, que poderá demitir o Governo, se estiver em causa o regular funcionamento das instituições democráticas”, explica Botelho.
“De acordo com a alínea a) do artigo 4.º do Código de Conduta, ‘no exercício das suas funções, os membros do Governo devem abster-se de qualquer ação ou omissão, exercida diretamente ou através de interposta pessoa, que possa objetivamente ser interpretada como visando beneficiar indevidamente uma terceira pessoa, singular ou coletiva’. Segundo o artigo 6.º, ‘considera -se que existe conflito de interesses quando os membros do Governo se encontrem numa situação em virtude da qual se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão’. Já o n.º 1 do artigo 10.º dispõe que os membros do Governo se abstêm de ‘aceitar, a qualquer título, convites de pessoas singulares e coletivas privadas, nacionais ou estrangeiras, e de pessoas coletivas públicas estrangeiras, para assistência a eventos sociais, institucionais ou culturais, ou outros benefícios similares, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções'”, descreve a constitucionalista.
“Da leitura dos preceitos acima mencionados, resulta claro que se pretendeu que os atentados à imparcialidade e à integridade dos membros do Governo apenas possam gerar responsabilidade em situações óbvias e evidentes. Daí a utilização reiterada de expressões como ‘objetivamente’, ‘seriamente’ e ‘com razoabilidade’. Assim, ficam afastados meros juízos subjetivos, que serão sempre legítimos numa sociedade democrática, mas que não relevam para os fins pretendidos no Código de Conduta”, defende Botelho. “Com efeito, se é certo que a conduta do primeiro-ministro pode ser objeto de leituras diversas, importa realçar que o que se quis proibir e evitar, à luz do Código de Conduta, são situações em que exista uma suspeita razoável, séria e objetiva de violação de deveres deontológicos. A exigência de uma dúvida ‘razoável’ significa a existência de uma interpretação objetiva, de um juízo informado do quadro legal. Não se trata de ‘achismo’ ou de ‘conversa de café’, mas de uma análise baseada no enquadramento legal e constitucional português”.
“Uma conduta só padecerá de ilegalidade se for objetivamente, seriamente, manifestamente violadora do dever de imparcialidade“, sublinha. “No caso em análise, há quem invoque que o primeiro-ministro não deveria dar o seu apoio à candidatura de Luís Filipe Vieira, não apenas por ser uma questão relativa a clubes de futebol, mas também por a pessoa em causa – Luís Filipe Vieira – ser arguido em processo judicial. Vamos por partes. Quanto a saber se o primeiro-ministro deveria ou não integrar uma candidatura deste género, necessitamos novamente de nos concentrar não no ‘deve ou não deve’, mas no ‘pode ou não pode’. Desde logo, a Comissão de Honra da candidatura de Luís Filipe Vieira dissolve-se após o processo eleitoral. Após a eleição, o seu fim está cumprido. Não se trata aqui da questão mais complexa de saber se o titular de um órgão político (em especial, de um órgão de soberania) poderá integrar um órgão social de um clube desportivo”.
“Uma vez que o Código de Conduta assenta na avaliação de comportamentos éticos, muito mais subjetivos e suscetíveis de várias leituras, é normal que tenham sido criadas balizas normativas. Em consequência, a violação da imparcialidade apenas pode verificar-se em situações-limite, que sejam ‘objetivamente’,’seriamente’, e ‘com razoabilidade’ identificáveis”, argumenta Catarina Santos Botelho, constitucionalista e professora de Direito na Universidade Católica Portuguesa.
“Ao aceitar o convite, o primeiro-ministro integra a Comissão de Honra não enquanto chefe do Governo em exercício de funções executivas, mas na qualidade de sócio benfiquista, apoiando o candidato que, no seu entender, melhor representa os interesses do clube de futebol. O facto de ser primeiro-ministro poderá obviamente dar mais visibilidade à candidatura, mas o seu apoio não é decisivo para o desfecho final de quem será o vencedor do processo eleitoral do clube. Poder-se-ia argumentar que, ao manifestar publicamente o seu apoio ao Benfica, estaria a exteriorizar a preferência por um determinado clube desportivo (Benfica), em detrimento de outros clubes e de outros candidatos. Ora, levado ao extremo, esse argumento levar-nos-ia a situações caricatas”, adverte.
“Conduzida ao exagero, poderíamos ver-nos numa situação em que se poderia questionar se o primeiro-ministro ao fazer exclusivamente compras no supermercado A, ficar alojado na unidade hoteleira B, optar por passar férias na zona C de Portugal, fazer refeições reiteradamente no restaurante D, vestir maioritariamente roupa da marca E, assistir a espetáculos da orquestra sinfónica F, em vez das demais alternativas disponíveis, estaria a ser imparcial“, exemplifica Botelho.
“Quanto ao segundo argumento, têm surgido críticas no sentido de que o primeiro-ministro não deveria apoiar aquela pessoa em concreto – Luís Filipe Vieira – por estar a ser investigado por vários supostos crimes. Ora, quem conduz a investigação criminal não é o Governo, mas sim o poder judicial. O primeiro-ministro não pode ter qualquer intervenção, quer direta ou indiretamente, nos processos judiciais pertinentes”, constata. “Com efeito, o primeiro-ministro não é magistrado, nem pode influenciar a decisão dos magistrados. O facto de o primeiro-ministro apoiar o candidato Luís Filipe Vieira não significa necessariamente uma validação das suas condutas na vida empresarial, tudo se reduzindo à vertente clubística”.
“O ‘calcanhar de Aquiles’ desta opção do primeiro-ministro é o de uma hipotética leitura no sentido de que Luís Filipe Vieira não cometeu os crimes sob investigação. Segundo esta perspetiva, funcionaria como uma espécie de testemunha abonatória. Estamos no campo da subjetividade, numa miríade de leituras possíveis. Aliás, podemos interpretar exatamente ao contrário e defender que, ao manifestar o seu apoio, o primeiro-ministro António Costa estará muito mais ‘sob o radar’ da opinião pública. Sabendo da sua ligação a Luís Filipe Vieira, a sociedade civil estará especialmente vigilante acerca de hipotéticos favorecimentos a Luís Filipe Vieira e poderá manifestar o seu descontentamento aquando das eleições legislativas. Daqui se retira, na minha opinião, que as apreciações acerca do (des)acerto da decisão do primeiro-ministro são subjetivas e facilmente reversíveis. Cada pessoa tem a sua mundividência e a sua visão ética, política e moral do mundo, o que é legítimo. Uma vez que o Código de Conduta assenta na avaliação de comportamentos éticos, muito mais subjetivos e suscetíveis de várias leituras, é normal que tenham sido criadas balizas normativas. Em consequência, a violação da imparcialidade apenas pode verificar-se em situações-limite, que sejam ‘objetivamente’,’seriamente’, e ‘com razoabilidade’ identificáveis“, argumenta.
Posto isto, Botelho conclui que “o dever de reserva não se aplica a este caso, nem resulta do Código de Conduta, nem do Código do Procedimento Administrativo ou da Constituição da República Portuguesa. Uma coisa é o que é juridicamente proibido, outra coisa é o que possa ser visto como sensato/ético/prudente para a imagem do primeiro-ministro e para a sua estratégia política”.
“Incumprimento redunda em responsabilidade política”
Questionada sobre a mesma matéria, isto é, a eventual violação do Código de Conduta do Governo pelo primeiro-ministro, do ponto de vista estritamente jurídico, Teresa Violante, constitucionalista e investigadora da Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt, considera que “o Código de Conduta é um instrumento de autorregulação, não é um documento criador de obrigações ou deveres jurídicos. Tanto que o seu eventual incumprimento redunda em responsabilidade política (sem prejuízo das situações em que esse incumprimento possa também significar o incumprimento de deveres jurídicos). Neste caso, tenho algumas dúvidas de que a situação em concreto se enquadre inequivocamente em algum desses preceitos: o artigo 4.º aplica-se ‘no exercício das suas funções’, o que não é o caso; o artigo 8.º refere-se a ofertas de bens materiais (e não se trata de nada deste género), e o artigo 10.º refere-se também a convites para iniciativas e eventos ou similares (também não creio que seja algo do género)”.
“De todo o modo, quando enquadra a questão ‘de um ponto de vista estritamente jurídico’, é necessário acautelar que o Código de Conduta não é um instrumento juridicamente vinculativo e, portanto, a questão que coloca não é de interpretação jurídica propriamente dita. Não se enquadradando inequivocamente no Código de Conduta, isso não significa que não possa/deva haver lugar a juízo de censura ética e política“, conclui Violante.
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Avaliação do Polígrafo:
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