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| - “Num momento em que se considerou uma tradição dentro da Assembleia da República que os quatro vice-presidentes fossem dos quatro partidos mais votados, transferiu-se para os eleitores a responsabilidade de escolher esses quatro vice-presidentes. E nós, da mesma forma que não vamos lá arrancar as cadeiras onde se senta o Chega, porque os eleitores decidiram que eram aqueles e eles vão sentar-se lá, também não nos vamos substituir aos eleitores nessa escolha porque, no fundo, é uma escolha dos eleitores“, afirmou Carlos Guimarães Pinto, recém-eleito deputado do Iniciativa Liberal, perante o olhar inquisidor de Rui Tavares, novo deputado do Livre, em debate na CNN Portugal que se realizou no dia 3 de fevereiro.
Guimarães Pinto procurava assim justificar o pré-anunciado voto a favor da escolha do partido Chega – Diogo Pacheco de Amorim – como candidato a uma das vice-presidências da Mesa da Assembleia da República, em frontal discordância com Tavares. “Não acho que Diogo Pacheco de Amorim vá ser um bom vice-presidente. Acho que não representa bem a democracia, ele próprio não tem particular gosto pelo nosso regime, o Chega não o tem. Mas eles representam um conjunto de eleitores que os puseram em terceiro lugar. A tradição na Assembleia da República é que o primeiro, o segundo, o terceiro e quarto [partidos] coloquem lá os vice-presidentes. Foi decisão dos eleitores”, reiterou o ex-líder do Iniciativa Liberal.
Confirma-se que a “tradição” da Assembleia da República é que “os quatro partidos mais votados” escolham os vice-presidentes?
Mais do que uma “tradição” informal, trata-se de uma prerrogativa inscrita no Regimento da Assembleia da República (RAP). Mas com um paradoxo oculto nas entrelinhas que já vamos fazer questão de desvendar.
Importa também salientar que essa mesma prerrogativa está consagrada no Artigo 175.º (Competência interna da Assembleia) da Constituição da República Portuguesa: “Sendo os quatro vice-presidentes eleitos sob proposta dos quatro maiores grupos parlamentares“.
De acordo com o estipulado no Artigo 23.º (Eleição da Mesa da Assembleia) do RAP, “os vice-presidentes, secretários e vice-secretários da Assembleia da República são eleitos por sufrágio de lista completa e nominativa. Cada um dos quatro maiores grupos parlamentares propõe um vice-presidente e, tendo um décimo ou mais do número de deputados, pelo menos um secretário e um vice-secretário. Consideram-se eleitos os candidatos que obtiverem a maioria absoluta dos votos dos deputados em efetividade de funções”.
Ou seja, cada um dos quatro maiores grupos parlamentares (quase sempre dos partidos mais votados, salvo alguma distorção mais acentuada do método de Hondt, como no exemplo do PCP que acaba de obter menos votos e mais um deputado do que o BE nas eleições legislativas de 2022) tem o direito de propor um vice-presidente, mas trata-se de um candidato que terá de ser eleito por maioria absoluta dos votos.
O já assinalado paradoxo reside no facto de três desses partidos (ou mesmo os quatro, em muitas legislaturas) não disporem de uma maioria absoluta de deputados que garanta, por si só, a eleição do próprio candidato. Implica portanto o apoio de deputados de outros partidos, através de votos favoráveis.
“Se algum dos candidatos não tiver sido eleito, procede-se de imediato, na mesma reunião, a novo sufrágio para o lugar por ele ocupado na lista, até se verificar o disposto no número seguinte. Eleitos o presidente e metade dos restantes membros da Mesa, considera-se atingido o quórum necessário ao seu funcionamento“, estabelece-se no RAP.
De resto, “terminada a reunião, mesmo não estando preenchidos todos os lugares vagos, o presidente comunica a composição da Mesa, desde que nela incluídos os vice-presidentes, ao Presidente da República e ao primeiro-ministro. A Mesa mantém-se em funções até ao início da nova legislatura”.
Foi o que aconteceu, precisamente, entre 1995 e 1998. Sob a liderança de Manuel Monteiro, o CDS-PP propôs o deputado Nuno Krus Abecasis como candidato a uma das vice-presidências da Mesa da Assembleia da República. Nas eleições legislativas de 1995, o CDS-PP destacara-se como a terceira força na cena política portuguesa, conquistando 534.470 votos (9,05%) e 15 mandatos de deputados. Apenas cinco partidos ficaram com representação parlamentar – PS (112 deputados), PSD (88 deputados), CDS-PP (15 deputados) e CDU (15 deputados) -, incluindo o PEV (integrado na coligação com o PCP), metade em comparação com 2019 e menos três em comparação com 2022.
Krus Abecasis não era propriamente um político anónimo ou de segunda linha. Tinha sido presidente da Câmara Municipal de Lisboa ao longo de uma década, entre 1979 e 1989, exercendo um total de três mandatos. Além de várias eleições como deputado à Assembleia da República desde 1976. Contudo, no início da VII Legislatura em 1995, o seu nome foi a votos por três vezes mas não obteve a necessária maioria absoluta de deputados (faltaram 10 votos nas duas primeiras tentativas e seis votos na terceira) para ser eleito vice-presidente da Assembleia da República.
Ao terceiro chumbo, o ex-autarca de Lisboa desistiu mesmo da candidatura. Logo após a votação, pediu a palavra na reunião plenária e declarou: “Senhor presidente [da Assembleia da República, então António de Almeida Santos do PS], o respeito que tenho por esta casa leva-me à convicção de que todos os senhores deputados que aqui estão sabem o que fazem e são responsáveis nos atos que praticam. Isso leva-me a dizer, senhor presidente, que retiro a minha candidatura.”
“Para mim chegaria a primeira negativa, mas chegaram-me vozes de vários lados desta Assembleia, e não só, nem particularmente do meu partido, que me diziam que estávamos em face de uma praxe aqui estabelecida. Não quis desrespeitar a Assembleia, cheguei à terceira votação. Compreenderão que não queira, eu próprio, ser desrespeitado! E que ser vice-presidente desta Assembleia é uma honra para qualquer português desde que a atinja com dignidade. Ultrapassámos os limites da dignidade! O meu partido não pediu para ter nenhum vice-presidente nem nenhum secretário, foi o Regimento desta Assembleia, legítima e livremente votado, que conduziu a isso”, sublinhou Krus Abecasis.
“Esta Assembleia acaba de negar um direito ao terceiro partido português! Pelo meu lado, não contribuirei para isto! Até porque penso que o tempo desta Assembleia é precioso demais para ser gasto em futilidades. Vamos tratar dos problemas do país, esqueçamos as infelicidades e os infortúnios a que, às vezes, a democracia mal entendida conduz”, finalizou o deputado centrista.
A par de Krus Abecasis, também Maria Helena Santo, outra deputada do CDS-PP, falhou a eleição para secretária da Mesa da Assembleia da República nas mesmas três votações. O partido liderado por Manuel Monteiro optou por não apresentar candidatos alternativos e, como tal, a Mesa da Assembleia da República funcionou nos anos seguintes com esses dois lugares vagos, na medida em que ainda assim, como está previsto no RAP, foi “atingido o quórum necessário ao seu funcionamento”.
Só em novembro de 1998, poucos meses depois de Manuel Monteiro ter sido destronado da liderança do CDS-PP por Paulo Portas, é que o partido do Largo do Caldas voltou a candidatar Krus Abecasis à vice-presidência da Assembleia da República e, dessa vez (a quarta tentativa), com sucesso. Mas foi vice-presidente por pouco tempo: viria a falecer em abril de 1999.
Para concluir, mais do que uma “tradição”, é uma regra plasmada no Regimento da Assembleia da República. Os quatro maiores grupos parlamentares têm o direito de propor um vice-presidente, mas trata-se de um candidato que terá de ser eleito por maioria absoluta dos votos. Sem garantia de sucesso e, aliás, a reprovação de um candidato não é inédita: já aconteceu em 1995, com Krus Abecasis do CDS-PP. Essa “tradição” foi também quebrada por uma vez na eleição de um presidente da Assembleia da República, através do chumbo da candidatura de Fernando Nobre do PSD (na condição de independente), em 2011.
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Avaliação do Polígrafo:
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