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| - “Vladimir Putin, ‘go fuck yourself’“. Este foi um dos versos que ecoou no festival “AgitÁgueda 2022” durante a atuação de Pedro Abrunhosa, no passado dia 2 de julho. O artista, cuja carreira é marcada pela intervenção política e social, não perdeu a oportunidade de, mais uma vez, interpretar o tema Talvez Foder para dar voz a uma causa. Lançada em 1995, a canção refere-se originalmente ao conflito israelo-palestiniano e à guerra na Bósnia. Há 27 anos, foi utilizada como hino de protesto contra o então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva, altamente contestado na fase final do seu consulado em São Bento.
Abrunhosa adaptou, mais uma vez, a letra do tema. Desta vez, para tecer duras criticas à invasão da Rússia à Ucrânia, dirigindo-se de forma direta ao chefe de Estado da Federação Russa e aos soldados russos. Mandou “lixar” os “mísseis e barcos russos” e disse que nunca escreveu uma música com “meias palavras”. Garantiu mesmo que a “violência, violação, morte e destruição” eram os termos mais obscenos que ali cantava e exigiu “justificações” aos responsáveis pelo que se passa no Leste da Europa.
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A performance do artista levou a que embaixada da Rússia em Portugal emitisse um comunicado em que condena as afirmações “grosseiras e inaceitáveis sobre os cidadãos da Federação da Rússia, bem como os seus mais altos dirigentes” e em que acrescenta que tem recebido “cartas de compatriotas russos zangados”.
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Na nota emitida pela representação diplomática da Federação Russa em território português, alega-se que “os gritos vergonhosos se enquadram em mais do que um artigo da legislação penal portuguesa“. E garante-se que foram informados, através dos canais diplomáticos, “os órgãos competentes de aplicação da lei”. A embaixada da Rússia nota ainda que “continua a vigiar os interesses dos cidadãos russos residentes em Portugal” e que “nenhumas provocações ignóbeis contra eles ficarão sem resposta”.
Esta queixa foi tema de análise no Jornal da Noite da SIC, com o comentador José Milhazes a ironizar que “até os artistas portugueses têm de ter cuidado” com as posições que adotam face à guerra na Ucrânia.
Mas será que estamos perante algum tipo de crime? E qual a probabilidade de existir condenação neste caso?
Ao Polígrafo, o advogado e especialista em Direito Penal, Paulo Saragoça da Matta, explica que neste caso poderemos estar perante o crime de difamação, tipificado no Código Penal no artigo 180º, que enquadra “atos injuriosos cometidos na ausência do visado”. Saragoça da Matta acrescenta que este tipo penal é agravado caso seja praticado “contra o chefe de Estado, mas neste caso o chefe de Estado Português”.
“A questão que me parece mais relevante aqui é que essa queixa pode existir, mas não pode existir na dimensão dos cidadãos que estavam a assistir e que foram ofendidos, porque o titular do direito de queixa é cada um desses cidadãos”, esclarece Saragoça da Matta. E assinala que o Estado russo “pode apenas manifestar a sua intenção de proceder criminalmente enquanto Estado e em nome dos titulares do órgãos políticos do Estado russo”.
Na mesma linha, André Lamas Leite, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, entende que, “em termos abstratos, o artista incumbiu na prática de um crime de difamação, ou vários, porque se dirige a várias pessoas”. Isto porque está “a imputar a terceiros factos ofensivos da honra ou consideração dessa pessoa“. Segundo o penalista, estamos perante um crime particular, ou seja, “implica que o titular do direito de queixa, neste caso Vladimir Putin ou alguém que represente as forças armadas russas, apresente queixa, se constitua como assistente e deduza uma acusação particular”. Reforça ainda que, no cenário em análise, pode existir uma agravação de “publicidade”, prevista no artigo 183º do Código Penal, devido aos meios utilizados – “um concerto, com público, que facilita a divulgação da mensagem”.
“A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) é muito homogénea no sentido de as difamações e injúrias encontrarem uma barreira na liberdade de expressão e na liberdade de imprensa”, indica Saragoça da Matta, que considera o caso em apreço um “exemplo clássico do exercício de liberdade de expressão a nível político-ideológico”.
Apesar de admitirem que não é descabida a integração dos factos em análise num tipo criminal, os dois especialistas estão de acordo em relação à ausência de viabilidade nas queixas que terão sido ou que eventualmente ainda venham a ser apresentadas. “A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) é muito homogénea no sentido de as difamações e injúrias encontrarem uma barreira na liberdade de expressão e na liberdade de imprensa“, indica Saragoça da Matta, que considera o caso em apreço “um exemplo clássico do exercício de liberdade de expressão a nível político-ideológico“.
“Poderá alguém dizer que foi excessivo. Para exercer a sua liberdade de expressão, de repúdio e de repulsa pelo comportamento do chefe de Estado russo e da própria Federação russa, se calhar não é preciso chegar ao nível do insulto. Mas ainda estará este comportamento abrangido pela liberdade de expressão? Por norma diria que não, mas atendendo ao cenário em que a infração foi cometida – um cenário de guerra que envolve dois estados, com toda a comoção pública internacional envolvida – eu continuaria a ser sensível ao argumento de estar a exercer a sua liberdade de expressão“, defende o penalista.
“É preciso que [a embaixada] perceba que Portugal não é a Rússia e que vivemos numa democracia e que há liberdade de expressão e liberdade de expressão artística”.
André Lamas Leite refere, igualmente, que a jurisprudência do TEDH tem sido “muito rica no sentido de considerar que as pessoas com maior visibilidade, nomeadamente os políticos, têm a esfera da honra e consideração mais restrita do que um cidadão comum“, ou seja, devido às funções que ocupam” têm de se sujeitar a determinadas críticas que o cidadão comum e que não ocupa um cargo público não tem”.
O professor de Direito Penal entende que as declarações em análise, em abstrato, “são claramente ofensivas“, mas que neste caso prevalece o direito à liberdade de expressão e à criação artística – ou seja, uma eventual queixa-crime dificilmente teria consequências. “Não tenho dúvidas que neste caso não foram ultrapassados os limites destas duas liberdades. E que, portanto, estamos diante de uma crítica que cabe dentro do contexto que vivemos”, afirma. Refere ainda que, enquanto o artista se insurgia contra a guerra que está em curso, afirmando que queria que a mensagem chegasse a Moscovo, “entende-se que este quer que ela chegue a Putin e ao poder político” e que lhe parece haver uma clara diferença entre essa intenção e a de ofender cidadãos russos.
Lamas Leite alerta ainda para o possível condicionamento que a embaixada está a exercer neste caso. “É preciso que [a embaixada] perceba que Portugal não é a Rússia e que vivemos numa democracia e que há liberdade de expressão e liberdade de expressão artística”.
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