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| - “Quando fores votar, não te esqueças”, comenta-se no post em causa, datado de 25 de janeiro de 2022. Exibe o que parece ser o recorte de uma notícia de jornal, com o seguinte título: “Gabinetes dos políticos ficam fora do regime de prevenção da corrupção“.
“O Mecanismo Nacional Anticorrupção, que vai substituir o Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC), vai ter mais poderes, mas isenta explicitamente os gabinetes de apoio ao Presidente, da Assembleia da República, de autarquias, governos regionais e dos órgãos de soberania de apresentação obrigatória de planos de prevenção da corrupção. A lei que criou o CPC não impunha a obrigação de planos de prevenção a estas entidades. Mas uma recomendação de 2009 não deixava ninguém de fora“, lê-se no destaque da notícia.
Trata-se de uma manchete da primeira página do jornal “Público”, na edição de 12 de maio de 2021. No interior do jornal, o artigo em causa surge com um título mais completo: “Gabinetes dos políticos e dos órgãos de soberania fora do regime de prevenção da corrupção“.
“O Governo vai excluir do novo regime geral de prevenção da corrupção os gabinetes dos principais órgãos políticos e de todos os órgãos de soberania, assim como o Banco de Portugal, pelo menos parcialmente. Desta forma, os gabinetes ficam desobrigados de apresentar planos de prevenção de riscos de corrupção, que passam a ser obrigatórios para todos os organismos públicos e também para as médias e grandes empresas, sob pena de serem aplicadas multas. De acordo com a proposta de decreto-lei, a que o ‘Público’ teve acesso, o futuro regime não se aplica aos ‘órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e outros órgãos independentes'”, informou o jornal na altura.
“Mas também não são abrangidos os ‘gabinetes de apoio dos titulares dos órgãos de soberania e dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas e das autarquias locais’. (…) É certo que os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, bem como os chefes de gabinete dos membros dos governos da República e regionais, estão abrangidos pela lei 52/2019, aprovada no âmbito do ‘Pacote da Transparência’. Mas o seu âmbito é muito diferente: diz apenas respeito à obrigação de apresentar declarações de interesses, rendimento e património à entrada e à saída de funções, para verificação de incompatibilidades e de acréscimos de riqueza. Incide sobre a situação de cada um dos visados, e não sobre mecanismos de prevenção de corrupção”, sublinhou.
De acordo com o regime em vigor quando a notícia foi publicada, “todos os ‘órgãos dirigentes máximos das entidades gestoras de dinheiros, valores ou património públicos, seja qual for a sua natureza’, tinham o dever de ‘elaborar planos de gestão de riscos de corrupção e infracções conexas‘, conforme a recomendação 1/2009 do Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC). Embora não tivesse carácter obrigatório, nestes 12 anos centenas de entidades o fizeram, incluindo o Banco de Portugal, a Assembleia da República, a Procuradoria-Geral da República, as secretarias-gerais do Conselho de Ministros e dos vários ministérios, os tribunais superiores, as assembleias regionais dos Açores e da Madeira e até o Gabinete do Vice-Presidente do Governo Regional da Madeira. Isto apesar de o CPC ter entre as suas competências apenas o acompanhamento dos instrumentos jurídicos de prevenção da corrupção adoptados pela Administração Pública e sector público empresarial”.
“Por outras palavras, na lei 54/2008, que criou o CPC, também não estavam expressamente abrangidos os gabinetes políticos e dos órgãos de soberania, e no entanto a recomendação 1/2009 não deixava ninguém de fora. Mas com a proposta do Governo, tudo muda. Desde logo é extinto o CPC, filho do ‘pacote Cravinho’, que é substituído pelo Mecanismo Nacional Anticorrupção (Menac). Este novo organismo deixa de funcionar junto do Tribunal de Contas e de ser presidido pelo presidente deste órgão jurisdicional, mas continuará a ter alguma proximidade na medida em que fica sob a sua fiscalização”, realçou-se no artigo do jornal “Público”.
Baseava-se numa proposta de decreto-lei do Governo que, entretanto, foi mesmo aprovado e publicado em “Diário da República” no dia 9 de dezembro de 2021 (pode consultar aqui). Trata-se do Decreto-Lei n.º 109-E/2021 que “cria o Mecanismo Nacional Anticorrupção e estabelece o regime geral de prevenção da corrupção“.
Este novo regime geral da prevenção da corrupção (RGPC), de acordo com o Artigo 2.º (Âmbito de aplicação), “é aplicável às pessoas coletivas com sede em Portugal que empreguem 50 ou mais trabalhadores e às sucursais em território nacional de pessoas coletivas com sede no estrangeiro que empreguem 50 ou mais trabalhadores. (…) É também aplicável aos serviços e às pessoas coletivas da administração direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e do setor público empresarial que empreguem 50 ou mais trabalhadores, e ainda às entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica dos setores privado, público e cooperativo e ao Banco de Portugal”.
Ressalva-se ainda que “os serviços e as pessoas coletivas da administração direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e do setor público empresarial que não sejam considerados entidades abrangidas adotam instrumentos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas adequados à sua dimensão e natureza, incluindo os que promovam a transparência administrativa e a prevenção de conflitos de interesses”.
Posto isto, persiste a dúvida sobre se os gabinetes dos políticos e órgãos de soberania ficam ou não isentos da aplicação do disposto no novo RGPC. Questionada pelo Polígrafo sobre esta matéria, Susana Coroado, presidente da Transparência e Integridade – Associação Cívica (TIAC), considera que “embora não esteja tão explícito na versão final da lei como parecia estar na versão da notícia, o Artigo 2.º do decreto-lei parece excluir, uma vez que abrange apenas ‘serviços e às pessoas coletivas da administração direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais e do setor público empresarial que empreguem 50 ou mais trabalhadores’. Ou seja, parece haver uma exclusão dos órgão de soberania de forma implícita“.
A explicação do Governo
Após vários dias de insistência, o Polígrafo acabou por obter um esclarecimento da parte do Ministério da Justiça. “O regime geral da prevenção da corrupção isenta os órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respetivos órgãos de gestão, uma vez que estes órgãos não são considerados ‘serviços da administração direta do Estado’. O Governo entende que não pode impor este diploma a estes órgãos. Qualquer previsão nesse sentido teria de ser ponderada pela Assembleia da República – ou pelos órgãos em causa, moto-próprio – e não pelo Governo”, responde o gabinete da ministra Francisca Van Dunem.
“Em relação aos membros do Governo e membros dos respetivos gabinetes, não há qualquer exclusão, pelo que a implementação dos programas de cumprimento normativo pelas várias áreas governativas que empreguem 50 ou mais trabalhadores devem ter em consideração a atividade dos membros do Governo e dos gabinetes pertinentes”, salienta.
Quanto às entidades administrativas independentes, “o regime é-lhes sempre aplicável, independentemente do número de trabalhadores. Quanto ao Banco de Portugal, a isenção é parcial, respeitando apenas às matérias referentes à participação do Banco de Portugal no desempenho das atribuições cometidas ao Sistema Europeu de Bancos Centrais. Em tudo o resto, o diploma é aplicável”, assegura o Ministério da Justiça.
Por fim, sublinha que “independentemente da existência ou obrigação de implementar planos de cumprimento normativo, em cumprimento do regime geral de proteção de denunciantes de infrações, deve haver pelo menos um canal de denúncia interna na Presidência da República, na Assembleia da República, em cada ministério ou área governativa, no Tribunal Constitucional, no Conselho Superior da Magistratura, nos Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, no Tribunal de Contas, na Procuradoria-Geral da República e nas representações da República nas regiões autónomas. As regiões autónomas devem ter um canal de denúncia interna na assembleia legislativa regional e em cada secretaria regional. As autarquias locais com 50 ou mais trabalhadores e 10.000 ou mais habitantes também devem ter pelo menos um canal de denúncia interna. Estes canais de denúncia admitem a apresentação de denúncias fundadas contra quaisquer pessoas, incluindo os titulares de cargos políticos e seus assessores ou magistrados, por exemplo”.
“Em relação aos membros do Governo e membros dos respetivos gabinetes, não há qualquer exclusão, pelo que a implementação dos programas de cumprimento normativo pelas várias áreas governativas que empreguem 50 ou mais trabalhadores devem ter em consideração a atividade dos membros do governo e dos gabinetes pertinentes”, garante o Ministério da Justiça.
Perante a explicação do Ministério da Justiça, a presidente da TIAC avisa que “embora seja positivo o esclarecimento de que os gabinetes do Governo estão abrangidos, receamos que, na prática, tal não venha a acontecer, porque não é comum um gabinete ter mais de 50 pessoas. Por outro lado, havendo gabinetes com menos do que 50 pessoas, em que medida é que o próximo Governo vai coordenar a obrigação imposta pelo RGPC e o Código de Conduta interno do Governo – instrumento que se espera que continue a vigorar, como aconteceu nos últimos dois Governos socialistas”. Nesse âmbito, questiona: “O Código de Conduta será o mesmo para todo o Governo, mas só cairão na jurisdição do Mecanismo Nacional Anticorrupção os gabinetes com mais de 50 pessoas? Ou haverá dois regimes diferentes dentro do Governo?”
Relativamente à alegação de que “o Governo entende que não pode impor este diploma a estes órgãos” e “qualquer previsão nesse sentido teria de ser ponderada pela Assembleia da República”, Coroado diz que “concordamos que o Governo não podia legislar sobre outros órgãos de soberania”, mas “0 que não se compreende é porque é que o Governo nunca teve a iniciativa de levar à Assembleia da República tanto a Estratégia Nacional Anticorrupção em geral, como o RGPC e, pelo contrário, manteve este último sob sigilo até à sua publicação em ‘Diário da República'”.
“Recordo a seguinte frase presente no relatório de 2021 sobre o Estado de direito da União Europeia: ‘A Estratégia Anticorrupção para 2020-2024, aprovada pelo Governo, está à espera de ser votada no Parlamento‘. Alguém deu uma informação errada à Comissão Europeia, uma vez que a Estratégia Nacional Anticorrupção nunca foi ao Parlamento. Resta saber quem foi”, acusa a presidente da TIAC, em declarações ao Polígrafo.
“Mais, se o RGPC não tivesse sido redigido e aprovado de forma opaca, se calhar estas dúvidas sobre a dimensão dos gabinetes poderia ter ficado mais esclarecida na própria lei. Infelizmente, o Governo optou pela opacidade numa matéria que exige tanta transparência como o combate à corrupção“, remata Coroado.
Em suma, o novo RGPC “isenta os órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respetivos órgãos de gestão”, tal como confirmou o Ministério da Justiça. Contudo, “em relação aos membros do Governo e membros dos respetivos gabinetes, não há qualquer exclusão”. O problema é o limiar mínimo de 50 pessoas que não se verifica em nenhum gabinete do atual Governo em funções, nem mesmo no gabinete do primeiro-ministro que tem um total de 42 elementos. Na prática é como se estivessem isentos.
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Avaliação do Polígrafo:
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