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| - As notícias dando conta do novo recorde de temperatura máxima na Antártida foram amplamente partilhadas nas redes sociais. Nos dias 6 e 9 de fevereiro de 2020, os termómetros instalados em estações de investigação registaram 18,4ºC e 20,75ºC, respetivamente. Mas entre as partilhas surgiram também diversas mensagens a negar ou relativizar esse facto.
Numa dessas publicações alega-se que a temperatura na Antártida aumentou porque “há mais Sol” e “os dias são mais longos“, devido a “alteração na inclinação da Terra“. Fonte de informação? Um vídeo no YouTube em que supostamente os “anciãos” inuítes – povos indígenas que habitam tradicionalmente regiões em torno do Círculo Polar Ártico, no extremo norte da Terra – explicam que, ao longo dos anos, têm vindo a identificar diferenças no local onde o Sol se põe. Este fenómeno estaria relacionado com uma variação da inclinação da Terra que torna os dias mais longos, em comparação com as noites.
O fenómeno de inclinação da Terra evocado na publicação está explicado na teoria de Milankovitch, segundo a qual o eixo de rotação da Terra varia entre os 22,1º e os 24,5º. Esta alteração da inclinação do planeta perfaz um ciclo completo a cada 26 mil anos e os cientistas acreditam que este movimento está relacionado com as diferentes eras glaciares que já atingiram a Terra. Atualmente, a inclinação do planeta está nos 23,5º, numa tendência decrescente. Mas esta não é uma justificação cientificamente válida para a mais recente onda de calor que atingiu a Antártida.
O que aconteceu nos primeiros dias de fevereiro?
No dia 6 de fevereiro, na estação Esperanza, registaram-se 18,4ºC. No dia 9 de fevereiro, na estação da Ilha de Seymour, registaram-se 20,75ºC. Ambos são superiores ao valor máximo alguma vez registado nestas estações – segundo a Agência Nacional de Meteorologia da Argentina, em março de 2015 tinham sido registados 17,5ºC.
Ora, na publicação sob análise garante-se que “não, não é a primeira vez que “as temperaturas na Antártida ultrapassam os 20ºC”. porque “em 1982, na base da Ilha Signy, registou-se 19,8ºC”. De facto, no dia 30 de janeiro de 1982 registaram-se 19,8ºC na Estação Signy Research, o valor mais elevado de sempre. Ainda assim, porém, inferior aos 20,75ºC que acabam de ser registados na Ilha de Seymour. É desde logo uma evidente contradição na mensagem da publicação que se auto-desmente.
Os dois novos valores máximos estão a ser verificados pela Organização Mundial de Meteorologia (OMM) e, segundo Randall Cerveny, relator da comissão para o Arquivo de Extremos Meteorológicos e de Clima da OMM, ainda é prematuro concluir que foi a primeira vez que a Antártida ultrapassou os 20ºC de temperatura.
“Precisamos primeiro de analisar dados muito importantes da estação, por exemplo, a localização, o tipo de equipamento, as práticas de medição, a calibração dos instrumentos, dos investigadores envolvidos. Uma vez que tenhamos esses dados, poderemos começar uma avaliação formal à validade da observação. Infelizmente, terminar essas tarefas não é algo que aconteça rapidamente (particularmente em estações meteorológicas polares remotas), por isso iremos provavelmente demorar algum tempo até que o Arquivo de Extremos Meteorológicos e de Clima possa tentar avaliar esta observação”, explicou o investigador, citado em artigo publicado na página da OMM.
Mas o que é que aconteceu nestes dias para justificar dois valores tão altos? Trata-se de um evento meteorológico que resultou da combinação de dois fatores: por um lado, as correntes de ar quente e húmido vindas do Pacífico Sul que se transformaram em vento quente e seco, depois de passarem pela cordilheira que carateriza a região; por outro lado, a estagnação atmosférica que se sentiu na região e que atuou como bloqueio, prolongando o evento meteorológico.
“Houve um ciclone que foi bloqueado pelas altas pressões” e que “direcionou esta corrente de humidade e calor em direção à península”, explica Irina Gorodetskaya, investigadora na área do clima da Antártida no Instituto Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM), da Universidade de Aveiro. Esta corrente quente e húmida que vinha do Pacífico inseriu-se nos chamados vórtices polares – correntes de vento que existem no planeta Terra, com grande importância nos árticos, e que mantêm uma trajetória no sentido dos ponteiros do relógio. Eventos como este foram também identificados na península da Antártida e no Oeste do continente no decorrer de um estudo liderado por Jonathan D. Wille, publicado em 2019.
“Esses ventos, neste período, perderam um bocado de velocidade“, esclarece Carlos Antunes, professor de Engenharia Geoespacial na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e especialista na variação do nível do mar. “Estas correntes, quando perdem velocidade, começam a criar meandros – tal como os rios que quando têm corrente são direitos e começam a correr devagar e a formar meandros nas grandes planícies”.
Além das correntes quentes e húmidas, houve também um mecanismo que tornou o ar mais quente só na região Este da cordilheira: os ventos Foehn. Citando um estudo liderado por D. Bozkurt, de 2018, Gorodetskaya recorda que “mostrava que esta corrente quente era importante, mas não o suficiente. Existe também o vento Foehn – um vento seco e quente que vem das montanhas”. Sem as montanhas a interferir no percurso da corrente de ar, não seria possível atingir temperaturas tão altas, concluíram os investigadores.
“Houve um ciclone que foi bloqueado pelas altas pressões” e que “direcionou esta corrente de humidade e calor em direção à península”, explica Irina Gorodetskaya, investigadora na área do clima da Antártida no Instituto Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM), da Universidade de Aveiro. Esta corrente quente e húmida que vinha do Pacífico inseriu-se nos chamados vórtices polares – correntes de vento que existem no planeta Terra, com grande importância nos árticos, e que mantêm uma trajetória no sentido dos ponteiros do relógio.
A criação dos ventos Foehn resulta da subida das correntes de ar quando se deparam com uma montanha. No topo da cordilheira, o vapor de água que é transportado condensa e o ar torna-se quente e seco. Trata-se de um “efeito meteorológico que é comum e que acontece também aqui na Península Ibérica: os ventos sobem a zona continental, largam esse vapor de água na forma de chuva ou pluviosidade e a temperatura que está no vapor de água – que se chama energia latente – é libertada para a atmosfera. Quando os ventos ultrapassam a tal cordilheira na península da Antártida, atingem a parte Este da península já com ventos secos e quentes”, explica Antunes. Os ventos Foehn são muitas vezes associados à criação de desertos nas imediações de grandes cordilheiras.
Essa diferença entre as regiões a Este e a Oeste da cordilheira é visível no mapa que foi produzido pela Goddard Earth Observing System (GEOS), o qual apresenta a temperatura do ar a dois metros de altitude no dia 9 de fevereiro. Este grafismo “mostra que as zonas mais quentes da Antártida foram exatamente naquela península, mas do lado Este. No interior da Antártida têm pontinhos azuis com temperaturas abaixo de zero”, analisa o professor.
Gorodetskaya salienta que, apesar de a península da Antártida ser a região mais quente do continente, “não é típico ter 20ºC frequentemente“, nem mesmo na época de temperaturas mais altas como aquela que agora se vive no Hemisfério Sul. Mas indica que este valor é referente a uma região “muito particular” e por isso “não pode ser aplicável a toda a Antártida”.
Também Ricardo Trigo, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e diretor do Instituto D. Luís, aponta no mesmo sentido. “É como estarmos a falar da Europa e alguém referir a temperatura das ilhas da Ria Formosa ou das Berlengas. Tem a relevância que tem, está no continente europeu, mas não representam a Europa”, exemplifica.
Não obstante, ressalva que estes valores “traduzem uma tendência. E a verdade é que a tendência dos últimos 40 anos, na península da Antártida – com alguns altos e baixos, não é contínua -, é de aquecimento extremo“. O professor relembra que “foi dessa península que, nos últimos 20 anos, saíram aqueles mega icebergs”.
Gorodetskaya salienta que, apesar de a península da Antártida ser a região mais quente do continente, “não é típico ter 20ºC frequentemente”, nem mesmo na época de temperaturas mais altas como aquela que agora se vive no Hemisfério Sul. Mas indica que este valor é referente a uma região “muito particular” e por isso “não pode ser aplicável a toda a Antártida”.
Para Gorodetskaya, “o que é alarmante é que este tipo de temperaturas altas e eventos quentes são mais frequentes hoje. O último recorde foi em 2015, não esperávamos que acontecesse tão rapidamente um novo recorde”.
A península da Antártida tem registado uma tendência de aquecimento de 0,5ºC a cada década, enquanto a região conhecida como Manta de Gelo Antártico Ocidental (West Antarctic Ice Sheet, em inglês) tem uma tendência de subida de entre 0,2 e 0,3ºC, para o mesmo período. Sobre a zona interior não existem dados suficientes para consolidar uma tendência. Nessa região remota, as médias de temperatura rondam os -60ºC, com um valor mínimo recorde de -89ºC.
O aumento sucessivo da temperatura associado aos eventos quentes extraordinários – como o que ocorreu no início de fevereiro – podem ter consequências irreversíveis na estabilidade do continente Antártico. “Estes episódios podem causar os chamados ‘tipping points’, ou seja pontos de irreversibilidade”, alerta Antunes, sublinhando que se um glaciar se desestabilizar e colapsar, poderá também levar consigo massas de gelo – de igual ou maior dimensão – que terão impacto, por exemplo, na subida do nível médio das águas do mar.
“É muito difícil dizer que este episódio se deve às alterações climáticas. O que nós começamos a observar é que os eventos começam a aparecer com maior frequência“, acrescenta o investigador, ressalvando que os cientistas ainda estão a estudar estes fenómenos e a tentar entender quais as respetivas consequências.
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Nota editorial: este conteúdo foi selecionado pelo Polígrafo no âmbito de uma parceria de fact-checking com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam nessa rede social.
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Falso: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas; geralmente, esta opção corresponde às classificações “Falso” ou “Maioritariamente Falso” nos sites de verificadores de factos.
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