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| - “No Congresso das Direitas, um participante foi hoje [dia 25 de maio] ovacionado enquanto defendia as virtudes do regime fascista em Portugal. Amanhã terão o prazer de ouvir André Ventura. E também Rui Rio. Como dizia um dos seus vice-presidentes, só faltou o PNR”, escreveu Pedro Marques, atual eurodeputado do PS e ex-ministro do Planeamento e das Infraestruturas, referindo-se à terceira convenção do MEL, a decorrer entre os dias 25 e 26 de maio em Lisboa.
O tweet de Marques exibe um vídeo com um excerto do discurso que Nuno Palma, professor de Economia na Universidade de Manchester e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, proferiu ontem na convenção, declarando por exemplo que “o século XX para Portugal correspondeu a uma enorme convergência com a Europa e esse arranque dá-se com o Estado Novo“.
O visado refutou desde logo a afirmação de Marques, também no Twitter, pedindo ao Polígrafo uma verificação de que “é falso o que diz este eurodeputado“, sublinhando que a sua intervenção “está disponível na íntegra no YouTube” e “tem que haver escrutínio quando os políticos mentem“.
Respondendo à solicitação de Palma, o Polígrafo analisou o seu discurso na íntegra (pode consultar aqui) e não apenas o excerto difundido por Marques. Passamos a transcrever as partes mais revelantes do mesmo, no âmbito de uma verificação com enfoque na alegada defesa das “virtudes do regime fascista em Portugal”.
“Obviamente, o país em termos políticos modernos começa com o 25 de abril e, desde o 25 de abril, Portugal é um regime de esquerda. Há quase 50 anos de domínio de um partido, o PS, que está no poder cerca de dois terços desde 1974. A única excepção que durou é a década de Cavaco Silva com um programa social-democrata, isto ao nível europeu até é centro-esquerda, até certo ponto. Há um peso anormal ao nível europeu de partidos de extrema-esquerda que não existe em outros países europeus. Ao nível parlamentar e também do poder local. Há uma ausência histórica de partidos com uma agenda liberal e também há uma ausência de partidos de direita com relevância eleitoral e até os partidos como o PSD e o CDS-PP afirmam-se como centristas, hesitam em afirmar-se como direita e têm uma agenda tipicamente social-democrata”, declarou Palma.
“Tudo isto ajuda-nos a compreender a notável resiliência do regime PS que tem quase 40% do apoio da população entre os que votam e que mantém esse apoio apesar de uma lista de escândalos que poderiam ser politicamente mortais”, prosseguiu. “As restrições ao poder executivo, os tais 21 anos sem crescimento económico, mas sem reformas no horizonte. Tudo isto leva um baixo custo ao PS e, ao contrário do que acontece em outros países, em que os partidos equivalentes ao PS têm sido destruídos. O PS governou 19 dos últimos 26 anos e isto agrava o velho problema da economia política que é quando o statu quo é ineficiente, mas leva a benefícios concentrados, mas custos difusos a toda a sociedade. Mas isto não pode ser apenas explicado pelo clientelismo da função pública e reformados, não chega, nem apenas pela falta de liderança eficaz à direita”.
“Não vai haver solução para a crise da direita nem para a ausência de mais liberalismo se não compreendermos as suas causas profundas. Porque é que Portugal é um país de esquerda? Isso prende-se com a natureza revolucionária da transição de 74/75, levou a uma radicalização política que não aconteceu de forma equivalente em Espanha em que a transição foi negociada e havia a memória da Guerra Civil e, claro, não havia uma guerra colonial a acontecer”, argumentou.
“Segundo, os partidos da democracia, principalmente os de esquerda, construíram uma narrativa que associou o atraso económico e social do país ao Estado Novo. Essa narrativa foi facilitada pela natureza revolucionária de abril de que falei, mas é falsa, não corresponde à realidade histórica, porque o atraso económico e político era muito anterior ao Estado Novo e, pelo contrário, o Estado Novo até correspondeu a um período de rápida convergência económica com a Europa Ocidental para Portugal. Pelo contrário, a democracia já dura há tanto tempo como o Estado Novo mas é cerca de metade desse período, os últimos 21 anos que correspondem, sim, a uma total estagnação económica do país“, sublinhou Palma, especializado em História Económica.
“Agora, eu quero ser muito claro, compreender o Estado Novo é muito importante, não para o defender, uma vez que é indefensável ao nível político, mas é importante para compreendermos porque é que é falsa esta narrativa que foi criada após o 25 de abril e porque é que essa narrativa nos ajuda a explicar porque é que, hoje em dia, Portugal é um país com imensa resistência a ideias que não sejam de esquerda“, ressalvou. “Isto leva a situações paradoxais, as tais tentativas de ilegalizar o Chega mas não o PCP, nem o PCPT/MRPP, nem o Bloco de Esquerda, nem o PNR.O atual primeiro-ministro que diz que um partido que negoceia com o Chega, como o PSD não é de confiança, mas depende da extrema-esquerda há anos e há seis anos do PCP em particular que é um partido, esse sim não democrático, não há dúvidas”.
“Vamos então tentar perceber como é que essa narrativa foi construída. O Estado Novo, como este gráfico mostra, o século XX para Portugal correspondeu a uma enorme convergência com a Europa e esse arranque dá-se com o Estado Novo. Mas isto não é só o PIB [Produto Interno Bruto] per capita, corresponde também a uma melhoria nas estatísticas de bem-estar como, por exemplo, a enorme queda da mortalidade infantil. Foi com o Estado Novo que se deu a convergência com a Europa e que se deu a integração com a economia europeia, com a EFTA. E o Estado Novo foi revisionista a vários níveis, reformista, resolveu o problema do analfabetismo, que em Portugal era de cerca de 75% em 1900 e, entre as crianças, no final dos anos 50 era absolutamente residual. Também foi reformista ao nível da justiça”, destacou.
“Mas, agora vamos ver como é que os materiais escolares que são ensinados nas escolas aos nossos filhos refletem esta realidade. Este é um tema que é muito caro à esquerda, em particular à extrema-esquerda. Quer controlar estas matérias, por questões de género, de colonialismo, disto e daquilo. O programa de História do 12º ano de acordo com os materiais oficiais do Ministério da Educação que estão disponíveis online, qualquer pessoa pode consultar, afirmam que é obrigatório ensinar às nossas crianças que o Estado Novo impediu a modernização económica e social do país e isto é considerado uma aprendizagem estruturante, mas é falsa e inconstitucional, uma vez que a Constituição proíbe o ensino de natureza ideológica. Depois, a sugestão de trabalho de equipa é um debate sobre o Holocausto, é bizarro tentar associar o Holocausto ao Estado Novo. O comunismo só é mencionado uma vez neste programa, sem ser criticado. A bibliografia são obras do marxista Eric Hobsbawm ou de Fernando Rosas. Este ensino que a esquerda e a extrema-esquerda em particular se insurge permanentemente dizendo que é fascista e dizendo que querem um ensino anti-fascista“, acusou Palma.
Em suma, há diversos pontos mais subjetivos do discurso de Palma que não são passíveis de verificação factual, na medida em que dependem de interpretações políticas, análises económicas, juízos de valor que implicariam extravasar largamente o âmbito deste artigo. Ou seja, não estamos a validar (nem a invalidar) o que é defendido e/ou argumentado no discurso de Palma.
Mas é seguro concluir que o orador traçou uma demarcação clara quanto ao cariz ditatorial do Estado Novo ao ressalvar que “compreender o Estado Novo é muito importante, não para o defender, uma vez que é indefensável ao nível político“. Ora, esta parte do discurso é omitida no excerto partilhado pelo eurodeputado do PS no Twitter. E terá sido essa a origem da falsa alegação de que o orador foi “ovacionado enquanto defendia as virtudes do regime fascista em Portugal”. Marques não terá ouvido o discurso na íntegra e daí talvez o equívoco quanto ao sentido e devido contexto das palavras do professor de Economia que assim se queixa com razão.
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Avaliação do Polígrafo:
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