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| - A pergunta era sobre uma aparente “saudação nazi” de André Ventura na manifestação de 27 de junho de 2020, em Lisboa, sob o mote “Portugal não é racista”. Mas o deputado e líder do Chega saltou para os “problemas com minorias em Portugal“, afirmando: “Niguém acredita nisso. Mas eu agora não posso levantar a mão? Não é saudação nenhuma. (…) Eu estava num processo de andamento e estava tudo sem fazer a saudação nazi. Mas nós temos pessoas tão desonestas em Portugal que queriam fazer passar que nós estávamos numa espécie de manifestação racial. Mas eu já lhe disse, não tenho nenhum problema com isso. Por muito que a Justiça ou outros me chamem à colação, eu vou continuar a dizer isto: há problemas com minorias em Portugal. E vou continuar a dizê-lo como líder parlamentar, como candidato a Presidente da República… E enquanto essas minorias não cumprirem o que os outros cumprem, vai ter-me aqui a dizer exatamente a mesma coisa”.
Questionado pelo jornalista da RTP sobre se “isso não é xenofobia nem racismo”, ou “se há problemas com essas minorias e não há problemas com o resto”, Ventura retorquiu: “Ouça, há um estudo de 2014 que diz que só 15% dos ciganos vivem do seu trabalho. Os outros vivem de quê? Vivem provavelmente de economia paralela”.
Esta alegação de Ventura tem sustentação factual?
Não é a primeira vez que o deputado do Chega faz referência a tal estudo de 2014. No dia 21 de agosto de 2020, por exemplo, em publicação no Twitter, apresentou um gráfico (descontextualizado) desse estudo e comentou: “A verdade acaba sempre por prevalecer. Quase 90% da comunidade cigana vive de ‘outras coisas‘ que não o seu próprio trabalho. Enquanto não percebermos que há aqui um problema estrutural, ele continuará a crescer descontroladamente”.
Importa salientar desde já que os números do tweet de 21 de agosto – “quase 90%” – não correspondem aos números evocados na entrevista de 15 de dezembro – “só 15%” – pelo mesmo Ventura. Também não correspondem aos números realmente indicados no estudo em causa, a saber, o “Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas“, da autoria dos investigadores Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias. Foi encomendado pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e publicado em dezembro de 2014.
O gráfico destacado por Ventura – com dados sobre “as principais fontes de rendimento dos indivíduos, por escalões etários” – foi retirado da página 189 do estudo. Logo na página seguinte encontra-se a seguinte informação:
“Quando questionados sobre a sua condição perante a atividade económica, cerca de 18% dos indivíduos responderam ser ativos com profissão/trabalho, contra quase 57% que afirma estar desempregado, à procura do 1º emprego ou nunca ter trabalhado. Esta situação contrasta com o que foi observado em outros estudos qualitativos realizados na AMP e AML em que metade ou mais dos entrevistados eram ativos (Mendes, 2005 e 2007). Estas evidências empríricas podem revelar por um lado, uma tendência para o reforço da precarização das condições sócio económicas deste segmento da população e por outro, como consequência uma menor autonomia nos seus modos de subsistência.
Do ponto de vista das mulheres, a situação de mais de metade divide-se entre domésticas, desempregadas, à procura do 1º emprego ou nunca trabalharam (45,5%), embora uma parte delas seja composta por ativas com profissão ou trabalho (6,4%).
Observa-se também que a proporção de homens ativos e a estudar é largamente superior à das mulheres, acontecendo o mesmo em relação à situação de desemprego”.
Na mesma parte do estudo, aliás, ressalva-se um possível enviesamento: “Muito provavelmente, a proporção elevada de inativos respondentes interliga-se com o processo de inquirição, uma vez que a sua maior presença na amostra pode revelar a sua maior disponibilidade para responder a inquéritos por questionário”.
Na mesma parte do estudo, aliás, ressalva-se um possível enviesamento: “Muito provavelmente, a proporção elevada de inativos respondentes interliga-se com o processo de inquirição, uma vez que a sua maior presença na amostra pode revelar a sua maior disponibilidade para responder a inquéritos por questionário”.
Além das discrepâncias entre o tweet, a entrevista e o que realmente está plasmado no estudo, mais relevante é ter em atenção a origem dos dados e subsequente representatividade (ou não) de todas as pessoas identificadas como sendo de etnia cigana que vivem em Portugal, na medida em que Ventura aponta para “os ciganos” como um todo, generalizado.
Ora, no âmbito do estudo “foram inquiridos 1.599 indivíduos ao nível nacional, de modo a que se captassem, tanto quanto possível, contrastes do ponto de vista das pessoas residentes nos diferentes concelhos, freguesias, bairros e núcleos residenciais, bem como a diversidade atendendo a variáveis como ao género, a idade e a escolaridade. O questionário podia ser respondido por pessoas com uma idade mínima de 16 anos e sem idade máxima, de nacionalidade portuguesa e apenas por uma pessoa de cada agregado familiar”.
Ou seja, os dados baseiam-se em inquéritos a 1.599 indivíduos de etnia cigana, incluindo menores de idade, realizados durante o ano de 2014, quando a taxa de desemprego nacional (incluindo todas as etnias) estava em 13,9%.
É a partir desta pequena amostra de 1.599 pessoas em 2014 (ano em que terminou o programa de resgate financeiro da troika) que Ventura extrapola para a comunidade cigana em Portugal como um todo, a qual terá dezenas de milhares de elementos no total. Como aliás se informa no mesmo estudo:
“As estimativas sobre a dimensão da população cigana portuguesa divergem conso- ante os procedimentos técnico-metodológicos mobilizados pelas diferentes fontes. Assim, e fazendo aqui um breve recenseamento de algumas das fontes nacionais e internacionais, cujos quantitativos estão longe de serem consensuais: Nunes (1996: 423), no seu estudo realizado na década de 70 do século passado, refere a existência de pouco mais de 20 mil ciganos em Portugal; o European Roma Rights Center, o Centre de Recherches Tsiganes et Unicef, em 1998 (OCDE, s.d.), apontam um valor que se situa entre os 90 – 100 mil ciganos portugueses; a ERRC/Númena (2007) estabelece um limiar entre os 50 e os 60 mil; o SOS Racismo (2001) realizou um inquérito por questionário junto das Câmaras Municipais avançando com um quantitativo de 21.831 pessoas ciganas; Castro (2004) através de dois inquéritos aplicados a mediadores institucionais, tais como as Câmaras Municipais e a Guarda Nacional Republicana, combinados com alguns resultados do estudo do SOS Racismo sugere um efetivo na ordem dos 34 mil e de 40.568 em 2012 e, por fim, a Estratégia Nacional para a Integração dos Ciganos em Portugal (ACIDI, 2013) avança com um limiar entre os 40 e os 60 mil“.
Outro elemento a ter em conta é que muitos dos inquiridos eram jovens estudantes, ao passo que alguns outros se declararam como desempregados mas, na realidade, desempenhavam atividades laborais de natureza informal. Citando novamente a partir do estudo:
“Talvez justificado por a maior parte dos agregados familiares serem compostos por efetivos jovens, a maior parte das respostas relativas à condição perante a atividade económica concentram-se na opção estudante (24,7%). A seguir a esta, e complementando a informação das fontes de rendimento, observa-se que uma percentagem relevante revelou estar desempregado (16,1%), seguindo-se, os ativos com profissão (10,7%). No entanto, deve ser ressalvado que foi percebido, durante o trabalho de campo, que alguns dos inquiridos que se declaravam como desempregados, desempenhavam alguma atividade laboral, contudo, esta por ser de natureza informal (biscates, vendas, tarefas agrícolas), os inquiridos optaram por subvalorizá-la. Uma questão pertinente, remete também para as concepções sobre o que se entende por trabalho. Por exemplo, num campo de resposta aberta, um inquiridor anotou ‘nunca trabalhou, só como vendedor ambulante’, o que nos remete para o não reconhecimento pelos próprios ciganos da venda ambulante como ‘trabalho’. O que resulta de uma interpretação do termo trabalho que o associa, exclusivamente a trabalho pago mediante salário, por conta de outrem, ignorando as situações de trabalho doméstico não pago ou serviço comunitário voluntário, por exemplo (Scott e Marshall 2005: 188 e 703)”.
De resto, a própria coordenadora do estudo, Manuela Mendes, em declarações à Agência Lusa (junho de 2015) sublinhou que “uma percentagem grande trabalha“, só que muitas vezes não se trata de trabalho no mercado formal, com um contrato ou um salário. Ainda assim, muitos estão desempregados, bastantes recebem o Rendimento Social de Inserção (RSI) e mais de metade admite que já passou fome.
Concluímos assim que esta alegação de Ventura é imprecisa, além de descontextualizada.
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Avaliação do Polígrafo:
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