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| - O último mês trouxe uma nova realidade de vida quotidiana para a maior parte das pessoas. A mudança de rotinas, o confinamento dentro de casa e a adaptação ao teletrabalho – em muitos casos com os filhos também em casa – são alguns dos desafios que têm de enfrentar. E que efeitos é que esta situação poderá ter ao nível da saúde mental?
Um estudo publicado na revista “The Lancet”, no dia 26 de fevereiro de 2020, apresentou uma revisão de literatura sobre o impacto psicológico da quarentena, concluindo que “a maior parte dos estudos revistos reportaram efeitos psicológicos negativos, incluindo stress pós-traumático, confusão e raiva” nestas situações de confinamento.
A equipa liderada por Samantha K. Brooks recomendou que “nas situações em que a quarentena é considerada necessária, as autoridades não devem manter a quarentena por mais tempo do que o estritamente necessário, providenciando uma lógica clara para a quarentena e informação sobre os protocolos e garantindo que os abastecimentos são providenciados”.
O artigo em causa suscitou dúvidas a leitores do Polígrafo que questionaram sobre o impacto concreto que o isolamento social e o confinamento poderão (ou não) ter na saúde mental das pessoas. Falámos com vários especialistas da área da Psicologia, no sentido de esclarecer as dúvidas dos leitores.
“Toda a investigação que já foi realizada sobre este assunto indica-nos que terá impacto. Agora, o impacto não é um impacto igual em toda a gente”, afirma Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos, manifestando a sua preocupação com a situação: “Esta é uma matéria que nos deve mesmo preocupar muito, embora não nos toque da mesma forma”.
A reação de cada pessoa à situação pode ser diferente. Se existem indivíduos que conseguem processar as suas reações emocionais perante o que se está a passar, há outros que apresentam uma reação emocional adaptativa mais intensa e que poderá até ser prejudicial ao funcionamento do seu dia-a-dia. “É uma reação que inicialmente serve para que a pessoa se tente adaptar, mas que pode não ser assim tão simples devido à intensidade que tem. E, por isso, a pessoa pode começar a sentir-se muito ansiosa, mais ansiosa do que aquilo com que consegue lidar normalmente para fazer as suas coisas do dia-a-dia”, explica o bastonário, acrescentando que este estado pode provocar dificuldade em respirar, taquicardia e perturbações do sono.
Estas reações acontecem em pessoas que não tenham qualquer psicopatologia ou perturbação mental, mas também não correspondem ao desenvolvimento de uma perturbação. “Estamos a falar de alguém que naquele momento – nestes dias, neste tempo – não está a conseguir lidar com o que está a sentir”, esclarece.
A ansiedade está ligada ao medo e surge como a resposta do organismo a esta emoção. “Alguém ter medo é natural e expectável, atrás desse automatismo do medo vem uma resposta – que nós sentimos no corpo, até – que é de ansiedade. E a questão é que, em algumas pessoas, esta resposta de ansiedade atinge uma intensidade e uma frequência que faz com que o indivíduo não consiga viver a vida normal no dia-a-dia”, descreve Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos.
Situações como estas podem vir a desenvolver-se em futuras perturbações mentais, caso não recebam o tratamento adequado, alerta Miranda Rodrigues. “Se nós atacarmos as situações que não desenvolvem perturbações antes que elas sejam uma perturbação, nós conseguimos evitar que elas se venham a transformar”, sublinha. Isto porque as pessoas que não conseguiram desenvolver capacidades para lidar com os níveis de ansiedade que estão a causar-lhes desconforto, essas pessoas vão necessitar de ajuda psicológica para encontrarem ferramentas para combater esta situação.
A ansiedade está ligada ao medo e surge como a resposta do organismo a esta emoção. “Alguém ter medo é natural e expectável, atrás desse automatismo do medo vem uma resposta – que nós sentimos no corpo, até – que é de ansiedade. E a questão é que, em algumas pessoas, esta resposta de ansiedade atinge uma intensidade e uma frequência que faz com que o indivíduo não consiga viver a vida normal no dia-a-dia”, descreve Miranda Rodrigues.
Este mecanismo tem como função proporcionar uma ação perante uma situação de medo, ativando substâncias no corpo que permitem, por exemplo, movimentar os músculos mais rapidamente – uma herança evolutiva dos nossos antepassados que precisavam de fugir ou lutar contra os predadores. No entanto, a falta de controlo sobre os níveis de ansiedade faz com que o indivíduo esteja “fisicamente muito alerta, fisicamente muito desperto e isso desgasta, não ajuda a tomar um conjunto de decisões que não têm nada a ver com nos movimentarmos”. Este estado ansioso “perturba inclusivamente a tomada de decisão, a forma como nos relacionamos com os outros, como nos expressamos, como dizemos as coisas e como expressamos as nossas sensações”, explica.
São muitos os fatores nesta pandemia que podem causar medo: o vírus, o contágio, a incerteza sobre o tratamento, a inexistência de uma vacina… As alterações de rotina que foram impostas aos cidadãos para conter a propagação da Covid-19 também têm peso e geram receio nos cidadãos. “O ser humano tem sempre alguma resistência à mudança, isso cria medo, cria preocupação. Nós não sabemos muito sobre a doença, não há um tratamento eficaz”, salienta o bastonário.
Além do fenómeno do medo, João Viseu, professor de psicologia e investigador no Centro de Investigação para o Turismo, Sustentabilidade de Bem-Estar da Universidade do Algarve, identifica outras condicionantes que afetam as capacidades do indivíduo para ultrapassar este período: a separação da família e dos amigos, a alteração total da realidade, o teletrabalho e a gestão com a família – muitas vezes com os filhos também em casa – e a possibilidade do desemprego e da crise económica.
“Nós somos como um copo de água cheio e a água representa os nossos recursos emocionais. Ou seja, os recursos que temos para lidar com este regresso à normalidade. Nós vamos perdendo os nossos recursos emocionais porque vamos saindo, ainda temos a ansiedade, o medo, o receio”, explica o investigador, em forma de metáfora. “É muito importante manter a natureza social, tentar manter contacto com a família, os amigos, os colegas, pelas redes sociais, e-mails, telefone, telemóvel e face a face – se respeitarmos as regras de distanciamento -, porque isso vai aumentar a rede de suporte social”, recomenda.
Uma das situações mais problemáticas será a dos idosos em geral que, por viverem sozinhos e não terem acesso às novas tecnologias, poderão constituir um grupo de risco também ao nível da saúde mental. “Os idosos, por exemplo, têm um dever especial de proteção porque, além de serem um dos grupos mais afetados pela Covid-19, também estão em risco de saúde mental pois estão sozinhos, não podem estabelecer o contacto face a face – que é aquilo a que estão habituados – com os amigos, os filhos, os netos”, alerta.
“É muito importante manter a natureza social, tentar manter contacto com a família, os amigos, os colegas, pelas redes sociais, e-mails, telefone, telemóvel e face a face – se respeitarmos as regras de distanciamento -, porque isso vai aumentar a rede de suporte social”, recomenda João Viseu, professor de Psicologia.
Apesar da incerteza sobre o futuro, a anunciada intenção das autoridades de terminar o “estado de emergência” e retomar gradualmente a atividade pode – segundo Luís Filipe Gomes, psicólogo clínico e psicoterapeuta especialista em EMDR (dessensibilização e reprocessamento de eventos traumáticos) – conduzir à criação de uma “realidade anormal”.
“Para muitas pessoas, todo este confinamento acabou por servir com uma forma de proteção. E ao voltarem a estar na rua – embora pudessem estar do ponto de vista psíquico, digamos assim, dormentes -, poderão passar a ter uma manifestação que pode ser comportamental, física, psicossomática. E isso afeta quer os adultos quer, principalmente, as crianças”, explica Luís Filipe Gomes.
“Não quer dizer que vamos ter todos problemas de saúde mental”, ressalva, por seu lado, João Viseu. “O que esta situação potencia é um risco na probabilidade de virmos a ter doença mental”, afirma. Segundo os modelos conhecidos para situações de catástrofe, citados pelo bastonário, entre 1% e 2% da população afetada desenvolve perturbações mentais no seguimento de acontecimentos catastróficos, tais como incêndios, terramotos e outras catástrofes naturais, por exemplo.
No entanto, estes números poderão não ser adequados para esta situação em concreto. “Isto que nós estamos a atravessar não configura exatamente uma situação de catástrofe, portanto não sabemos se podemos concluir que haverá 1% a 2% de pessoas a desenvolverem perturbação, porque nós estamos perante um fenómeno com uma duração muito maior”, esclarece Miranda Rodrigues, acrescentando que este modelo “não foi estudado para este tipo de situações”.
“Mesmo que fossem esses os números, temos aqui algo que não podemos desvalorizar: quando estamos a falar de 10 ou 20 mil pessoas que foram afetadas numa região por causa de um incêndio, significa uma coisa; 1% a 2% da população toda de um país significa outra”, distingue.
“Para muitas pessoas, todo este confinamento acabou por servir com uma forma de proteção. E ao voltarem a estar na rua – embora pudessem estar do ponto de vista psíquico, digamos assim, dormentes -, poderão passar a ter uma manifestação que pode ser comportamental, física, psicossomática. E isso afeta quer os adultos quer, principalmente, as crianças”, explica o psicólogo clínico Luís Filipe Gomes.
O papel da comunicação é importante nesta fase porque pode transmitir tranquilidade às pessoas. Enquanto no início da pandemia a expressão “vai ficar tudo bem” tinha como objetivo passar um sentimento positivo, o próximo passo poderá ser mais complicado. “Os nossos pensamentos influenciam a forma como nós nos sentimos”, diz Miranda Rodrigues. “A grande dificuldade da fase que aí vem é como é que se passa uma mensagem – do ponto de vista da saúde pública – de modo a que os comportamentos não se tornem desleixados, mas, ao mesmo tempo, também não sejam tão inibidos como são agora”.
Nesta situação de incerteza é preciso estar atento aos sinais: ansiedade, insónias, perda de apetite, aumento ou perda de peso. E procurar ajuda junto dos profissionais de saúde. “Se as pessoas começarem a sentir que estão a ficar assoberbadas, que estão a ficar mais preocupadas do que o normal, mais ansiosas, mais angustiadas, devem, em primeira análise, procurar o Centro de Saúde, falar com o médico de família ou com o enfermeiro de família. As pessoas nessa situação têm de sentir que existe proximidade”, aconselha João Viseu.
“E mesmo que não se sintam confortáveis a ir ao Centro de Saúde, também existem linhas de acompanhamento psicológico – como a linha do SNS24 destinada ao apoio psicológico – para garantir que durante este período ninguém fica desamparado”, conclui.
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Avaliação do Polígrafo:
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