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| - Está a circular no Facebook uma publicação que alega que a presidente da Comissão Europeia defendeu o fim do Código de Nuremberga para tornar a vacinação contra a Covid-19 obrigatória. É falso. Basta analisar as declarações de Ursula von der Leyen para concluir que a líder do executivo comunitário nunca assumiu tal posição. A informação é também desmentida ao Observador por fontes oficiais da Comissão Europeia.
O Código de Nuremberga é um conjunto de dez princípios éticos para a experiência médica em seres humanos e foi formulado em 1947, na sequência das experiências feitas durante a Segunda Guerra Mundial. Tem o objetivo de proteger os cidadãos e trata-se, por isso, de um dos mais influentes documentos na história da investigação clínica.
A publicação começou a circular pouco depois de uma conferência de imprensa a 1 de dezembro (quarta-feira, como indica a publicação de Facebook mais abaixo) na qual a presidente da Comissão Europeia admitiu que os Estados-membros têm de considerar a obrigatoriedade das vacinas.
Penso que é compreensível e apropriado liderar esta discussão agora, sobre como podemos encorajar e pensar potencialmente na vacinação obrigatória dentro da União Europeia. Isto precisa de ser discutido, precisa de uma abordagem comum. Mas é uma discussão que eu penso que tem de acontecer”, afirmou Ursula von der Leyen.
Eis o post de Facebook em causa, que sugere que a presidente da Comissão Europeia “prepara-se para forçar o cancelamento do Código de Nuremberga” e “está a desencadear um processo tirânico a nível europeu”:
A conferência de imprensa que levou a esta publicação está disponível na íntegra aqui. Mas, ao analisar todas as declarações, conclui-se que em momento algum a presidente da Comissão Europeia falou sobre o Código de Nuremberga.
As declarações de Ursula Von der Leyen em causa sobre a vacinação obrigatória surgem a partir do minuto 22, depois de uma jornalista questionar a líder do executivo comunitário sobre as restrições que o governo da Grécia impôs aos não vacinados. Mas o Código de Nuremberga nunca é referido. Ursula von der Leyen expõe apenas uma visão pessoal e reforça: “(A vacinação obrigatória) é algo que compete apenas aos Estados-membros. Como tal, não me cabe a mim fazer qualquer tipo de recomendação”.
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Contactado pelo Observador, um porta-voz da Comissão Europeia também garante que as alegações “não são verdadeiras”. Um outro porta-voz confirma igualmente que “o Código de Nuremberga nunca foi mencionado” por Ursula von der Leyen nas declarações em análise e conclui: “Trata-se de fake news [notícias falsas]”.
Na resposta enviada por e-mail ao Observador, um dos porta-vozes do executivo comunitário reforça que Ursula von der Leyen explicou que impor a vacinação obrigatória é uma decisão que cabe aos Estados-membros e que o objetivo da União Europeia é continuar a aumentar as taxas de vacinação. “Para alcançar este importante objetivo, é apropriado ter uma discussão sobre a vacinação obrigatória, como forma de aumentar a taxa de vacinação”, acrescenta a fonte, reforçando o que foi transmitido por Ursula von der Leyen na conferência de imprensa em questão.
Como já foi referido, o Código de Nuremberga surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. Foi uma resposta direta às experiências que os médicos ao serviço do regime nazi conduziram ao longo da guerra nos campos de concentração. Estes levaram a cabo experiências médicas em cidadãos sem consentimento. Os médicos em questão foram mais tarde julgados na cidade alemã de Nuremberga, em 1947.
A defesa dos médicos alegou que as experiências em questão não divergiam assim tanto de outras práticas na área da medicina. Como tal, dois profissionais de saúde norte-americanos que integraram a acusação redigiram um documento que pretendia definir o que constitui uma investigação ética, como indica o The New England Journal of Medicine. O resultado foi, precisamente, o Código de Nuremberga.
Ao Observador, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes, explica que “o Código de Nuremberga não é propriamente uma lei, mas tem uma força tremenda”. Porquê? “Porque quem não o cumpre é fortemente penalizado. A lei de cada país interpreta o Código de Nuremberga. Há a sanção da comunidade científica e internacional. E, depois, há o paralelismo que se faz com a lei de cada país”, explica.
O Código de Nuremberga tem força de lei não pelo instrumento em si, mas pelos instrumentos jurídicos a nível nacional e internacional que decorrem dele”, resume o professor.
Questionado sobre as declarações de Ursula von der Leyen, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes, considera que a líder do executivo comunitário não teve a intenção de “impor” a vacinação. “O conceito de obrigatório não é o mesmo que mandatório”, destaca ainda Rui Nunes. “Mandatório implica uma intervenção física sem consentimento. Obrigatório é quando, neste caso sem vacinação, a pessoa é penalizada”, explica o presidente da Associação Portuguesa de Bioética.
Para o professor, a publicação nas redes sociais que alega que a presidente da Comissão Europeia defendeu o fim do Código de Nuremberga para tornar a vacinação contra a Covid-19 obrigatória “é branquear o que se passou nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial”. “Estão a fazer um paralelismo que não existe. Está-se a branquear o que passou. As pessoas não têm ideia das experiências que foram feitas nos campos de concentração – e que deram origem ao Código de Nuremberga”, alerta Rui Nunes ao Observador.
Quanto à vacinação obrigatória, o especialista conclui: “Não creio que seja justo nem adequado fazê-lo”.
O diretor do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra, André Dias Pereira, também é taxativo: “A vacinação contra a Covid-19 não viola o Código de Nuremberga”. O especialista lembra que a vacina contra a Covid-19 “não é experimental”. “Ela está autorizada pela Agência Europeia do Medicamento e Infarmed. Não tem a ver com experimentação humana”, conclui.
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E acrescenta: “O Código de Nuremberga visa proteger pessoas contra experiências sem consentimento. A vacinação obrigatória visaria proteger a saúde pública”.
Quanto à publicação das redes sociais, o também vice-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida fala em “exagero” e também faz uma comparação com o regime nazi.
Neste período, certas pessoas de certas etnias ou com determinadas características foram instrumentalizadas. Foram utilizadas para desenvolver experiências médicas e testar os limites do corpo humano ou dispositivos médicos e medicamentos. A vacinação obrigatória em nada se pode confundir com isto”, defende André Dias Pereira.
O diretor do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra fala assim, portanto, numa tese “muito forçada”. O investigador lembra ainda que há vacinas obrigatórias em Portugal e considera que o certificado digital já impõe, de certa forma, uma “obrigatoriedade indireta”.
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Voltemos à publicação de Facebook em análise. O autor alerta ainda para um “escandaloso conflito de interesses” ao escrever que a presidente da Comissão Europeia é casada com “o diretor médico da Biontech-Pfizer”. Esta informação também está errada. O marido de Ursula von der Leyen, Heiko von der Leyen, é diretor médico da Orgenesis, como se pode ver aqui. Trata-se de uma empresa de biotecnologia. A Pfizer e a BioNtech são farmacêuticas diferentes, pelo que têm responsáveis médicos diferentes. O perfil da Chief Medical Officer da Pfizer pode ser consultado aqui e o da BioNtech aqui. Não há, portanto, um “diretor médico da Biontech-Pfizer” como alega o post de Facebook.
Para já, tornar a vacinação totalmente obrigatória para todos os cidadãos ainda só é uma realidade na Áustria, que vai aplicar a medida a partir de 1 de fevereiro. A agora antiga chanceler alemã Angela Merkel também admitiu no início do mês a obrigatoriedade da vacina contra a Covid-19 na Alemanha. Esta semana, o presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou igualmente que a obrigatoriedade da vacina “é uma hipótese”.
Como já foi referido, a Grécia decidiu recentemente tornar a vacina obrigatória, mas apenas para os cidadãos com mais de 65 anos. Os que não se vacinarem podem ter de pagar uma multa de 100 euros todos os meses. Outros países da Europa ocidental têm aplicado a vacinação obrigatória só aos profissionais de saúde, como Itália ou França, por exemplo.
A 20 de novembro, o diretor regional da Organização Mundial de Saúde para a Europa, Hans Kluge, descreveu a vacinação obrigatória como “um último recurso”, mas avisou que estava na altura de se ter “um debate jurídico e social” sobre o tema.
Por cá, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já veio dizer que a vacinação obrigatória em Portugal “não é um tema da ordem do dia”.
Conclusão
A presidente da Comissão Europeia nunca defendeu o fim do Código de Nuremberga, um conjunto de princípios éticos que orientam a investigação em seres humanos, a fim de tornar obrigatória a vacinação contra a Covid-19, tal como sugere uma publicação de Facebook. A questão surgiu depois de uma conferência de imprensa na qual Ursula von der Leyen defende que está na altura de ter “uma discussão” sobre a medida. Mas, ao analisar todo o discurso da líder do executivo comunitário, conclui-se que o Código de Nuremberga nunca é referido. A informação é também desmentida ao Observador por duas fontes oficiais da Comissão Europeia.
Além do mais, conclui-se que a vacinação contra a Covid-19 não viola o Código de Nuremberga, visto que a vacina está autorizada pelas autoridades de saúde e não se trata de uma medida experimental, tal como explicam ao Observador o diretor do Centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra e o presidente da Associação Portuguesa de Bioética.
Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.
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