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| - Depois de a Universidade de Coimbra ter anunciado que vai deixar de servir carne de vaca nas cantinas, a polémica sobre o impacto da pecuária nas emissões de gases com efeito de estufa tem sido amplamente debatida nas redes sociais. Entre múltiplas publicações sobre o tema destacou-se uma figura esquemática indicando que o balanço entre as emissões para atmosfera e o sequestro de carbono nos solos é positivo no caso da produção de vacas a pasto, ou seja, que esta atividade produz menos carbono do que aquele que é retido.
Na imagem surgem três fatores, sendo dois deles responsáveis pela emissão de carbono – um conjunto de “50 vacas mães” e “80 bezerros jovens” que produz um total de 80 toneladas de carbono e os aparelhos mecânicos necessários à atividade definidos como “trator/equipamento/processamento/distribuição” que são responsáveis pela emissão de 32 toneladas de carbono – e um terceiro que garante que “500 toneladas de carbono são removidas por 150 acres de pastagem” (o equivalente a cerca de 60 hectares). No final surge a conclusão: “Esta fazenda remove 388 toneladas de carbono da atmosfera anualmente”.
A informação veiculada através da figura esquemática é imprecisa, por várias razões: não apresenta qualquer indicação referente às fontes que sustentam os dados, não é clara nos limites que são abrangidos pela contabilização feita e não indica qual é o sistema de pastagens a que se refere nem o país ou continente. A parte textual está escrita em língua portuguesa, com referência a “acres” – que não é uma medida utilizada em Portugal – e foi originalmente publicada em inglês num blog alojado na página Fix (pode consultar aqui), ilustrando um artigo que explicava o processo de criação de vacas a pasto para consumo.
No entanto, e tendo em conta que os valores apresentados são dificilmente comprovados por falta de dados, a imagem levanta uma questão importante: será verdade que a criação de gado a pasto absorve mais carbono do que aquele que emite? O Polígrafo contactou vários especialistas da área e concluiu que, apesar de as variantes que podem influenciar a respostas a esta pergunta serem muitas, não é impossível que uma pastagem apresente valores positivos de sequestro de carbono.
“Em Portugal temos múltiplos sistemas: temos as pastagens semeadas biodiversas – que são pastagens melhoradas – e depois temos todo um gradiente que vai até à pastagem espontânea, que simplesmente está lá e é usada para que os animais pastoreiem”, começa por explicar Ricardo Teixeira, professor de Engenharia do Ambiente no Instituto Superior Técnico.
As pastagens biodiversas são as mais eficientes no sequestro e chegam a reter níveis de carbono nos solos que compensam as emissões da maquinarias e dos animais – no caso das vacas, o principal gás emitido é o metano que, para efeitos de contabilização é muitas vezes convertido a equivalente a carbono -, podendo chegar a atingir “quantidades comparáveis com o que está nesta imagem”.
“Estima-se que o potencial de sequestro médio em 10 anos destas pastagens seja de cerca de 6.5 toneladas de CO2 [dióxido de carbono] por hectare”, explica o professor, com base numa investigação que realizou em 2015 (em colaboração com outros investigadores).
Por sua vez, Luísa Chambel, engenheira agrónoma e professora na Escola Superior Agrária de Coimbra, considera que esta imagem pode estar a referir-se a um outro sistema de pastagem que existe me Portugal: “Se estivermos a falar de sistemas silvopastoris do género do montado – o ecossistema onde predomina um arvoredo disperso -, os valores [de sequestro] são ainda maiores do que estes”, garante, apontando que podem mesmo chegar às 900 toneladas por cada 60 hectares, o equivalente à área referida na imagem.
Por outro lado, “para sistemas de pastagem de sequeiro – pastagens que não são cobertas de arvoredo e estão em terrenos pobres, sem regadio nem pastagens melhoradas -, os valores são bastante inferiores. Andam à volta, talvez, das 200 ou 300 toneladas de sequestro”, calcula, ressalvando que “as possibilidades são tão diversas que é impossível fixar um número”.
Ricardo Teixeira partilha a mesma opinião sobre o impacto positivo das árvores no sequestro do sistema pastoril, mas sublinha que é necessário que a floresta seja jovem e esteja ainda em crescimento. “Se quisermos também levar o efeito das árvores nestes sistemas agroflorestais e se a floresta ainda estiver em crescimento, efetivamente isso é um contributo extra que pode ajudar ao sequestro do carbono no sistema em geral e que desloca o balanço efetivamente para o sequestro”, afirma.
“É esse o caso médio que se encontra no planeta? Aí a resposta é não”, defende o professor de Engenharia do Ambiente, referindo-se aos resultados publicados em 2017 no relatório “Grazed and Confused?” (pode consultar aqui), elaborado pela Food Climate Research Network, em parceria com várias universidades e instituições. “As avaliações globais (em oposição às regionais ou por hectare) do potencial de sequestro por meio do manejo das pastagens são realmente poucas e distantes, mas variam de cerca de 0,3-0,8 Gt [gigatoneladas] CO2/ano, com a estimativa mais alta assumindo um forte nível de ambição. Este potencial compensa 20-60% das emissões dos sistemas de pastoreio: 4-11% das emissões totais de animais e entre 0,6 e 1,6% das emissões anuais totais de gases de efeito de estufa – para as quais, obviamente, o gado também contribui substancialmente”, informa-se no relatório.
No caso português, segundo dados do Inventário Nacional de Emissões de Gases com Efeito de Estufa 1990-2017, fornecidos pela Agência Portuguesa do Ambiente ao Polígrafo (pode consultar aqui), o balanço das emissões e sequestro de carbono nos sistemas pastoris tem apresentado valores positivos, ou seja, existem mais emissões do que sequestro. No entanto, desde o início da década de 2010, este valor tem vindo sucessivamente a descer, passando de 673,3 ktoneladas para 49,8 ktoneladas em 2017 (o valor disponível mais recente). Estes dados podem significar que os sistemas de pastagem estão a tornar-se mais eficientes, produzindo menos carbono. Ou, por outro lado, que existem ao nível nacional mais sistemas capazes de fazer o sequestro de carbono.
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O que ficou de fora na imagem?
Delimitar o sistema é um fator importante quando se fala de contabilização e balanço de carbono em pastagens. No caso da imagem analisada existem poucos dados sobre os parâmetros incluídos. É referido que existem “50 vacas mães” e “80 bezerros jovens” e que a maquinaria inclui “trator / equipamento / processamento / distribuição”, mas não há qualquer referência sobre o modelo de pastoreio em causa, se existe algum tipo de suplemento alimentar ou se o processo de distribuição é contabilizado até à mesa do consumidor. Todos os passos da produção contam e são estes que por vezes contabilizam as maiores emissões.
No que concerne à maquinaria incluída no balanço, as variáveis também são muitas: “As emissões indicadas como associadas à maquinaria, processamento e distribuição são muito dependentes da maquinaria usada, distâncias percorridas, etc. É impossível aferir se o número é plausível, dada a extrema variabilidade, mas a ordem de grandeza não parece estranha”, indica Ricardo Teixeira.
Outro problema da imagem é que esta parte do princípio de que os animais comem única e exclusivamente pastagem e isso pode não ser a norma. “Na última parte da vida dos novilhos é muito comum que estes sejam confinados e tenham um ‘acabamento’. E esse ‘acabamento’ é muitas vezes à base de concentrado. Os animais estão a comer outras coisas que vêm de fora – muitas vezes até de fora do país – e que vêm com emissões [de carbono] associadas”, salienta Ricardo Teixeira, acrescentando que “se não levarmos em conta as emissões dessa parte da alimentação, estamos a ter uma perspetiva enviesada, porque estamos a olhar só para o que acontece dentro de uma região ou de uma exploração”.
Fora da exploração também existem vários processos que, provavelmente, não estão a ser contabilizados na figura em análise. “O processo até chegar à mesa do consumidor, de certeza que não está incluído. Para chegar até ao matadouro é provável que já inclua”, afirma Luísa Chambel que, ainda assim, classifica os valores das emissões como “relativamente baixos”.
“O problema quando se faz uma análise muito superficial é que é preciso dizer-se exatamente qual é a barreira do sistema. A fronteira do sistema pode incluir desde os plásticos, a carne cortada em pequenos bifes e que é consumida comprando apenas um bife, por exemplo. O processo de refrigeração é que torna a pegada de carbono muito alta, mas isto é para todo o processo alimentar”, acrescenta.
Mas a principal polémica à volta das pastagens prende-se com os gases de estufa, nomeadamente o metano, que são produzidos pelas vacas. De acordo com uma recente notícia da TSF, as emissões do gado para carne têm vindo a aumentar desde 1990, atingindo em 2017 o valor de 89,3 milhares de toneladas. No entanto, José Pedro Fragoso de Almeida, professor coordenador da área de pastagens na Escola Superior Agrária, justifica esse crescimento nas emissões com o aumento do número de animais. “Se nós compararmos com 1986, tínhamos menos de 800 mil hectares de pastagens, neste momento ao nível nacional temos 1,9 milhões de hectares. O que é que acontece? Obviamente que quando fazemos um inventário tomamos em consideração o número total de vacas”, explica.
Fragoso de Almeida não concorda com a publicação de relatórios baseados apenas nas emissões. “Tirar a vaca – ou o ruminante – do seu contexto, do contexto em que é produzida em Portugal é profundamente errado”, considera. O professor da Escola Superior Agrária desenvolveu recentemente dois inventários que colocam lado a lado as emissões dos animais com o sequestro das pastagens nas zonas do Alentejo – a maior zona de produção de carte a pasto em Portugal – e na Beira Interior, mas deixa de fora as emissões referentes à maquinaria, ao processamento ou a qualquer alimentação externa que possa existir. “O balanço de carbono na produção das vacas, ovelhas e cabras, em 2017, consegue ser tão positivo que só aqui, na Beira Interior, chega para compensar metade das emissões dos aterros sanitários do país inteiro”.
A atividade da agricultura – que inclui a pecuária – surge em terceiro lugar (9,8%) no pódio da atividade que mais contribui para os gases com efeito de estufa, segundo o Inventário Nacional de Emissões de Gases com Efeito de Estufa 1990-2017. Em primeiro lugar surge o setor da energia com 72,5% das emissões, seguido pelo processamento industrial e uso dos produtos com 11,1%.
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Nota editorial: este conteúdo foi selecionado pelo Polígrafo no âmbito de uma parceria de fact-checking com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam nessa rede social.
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Misto: as alegações do conteúdo são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou incompleta.
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