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| - “Violar uma gaja e deixá-la e ir lá o INEM”. Esta foi a resposta de um jovem a uma pergunta feita pelo promotor de um vídeo transmitido em direto no Instagram, o humorista Fábio Alves. A hesitação inicial quanto a relatar a situação no Instagram foi substituída por um relato minucioso, numa altura em que já estavam perto de 700 pessoas a assistir ao vídeo. O género e identidade da vítima foram revelados e o jovem alegou ter sido uma situação sem precedentes: “Acredita em mim, foi só uma vez”.
Num outro vídeo publicado posteriormente, Fábio Alves contou que, indignado com o que ouviu no seu direto, denunciou a situação à Polícia Judiciária do Porto, fornecendo os dados que tinha do suspeito. Disse também que foi contactado pela visada, que o autorizou a fornecer o seu contacto às entidades competentes. A alegada vítima já prestou declarações, mas recusa que se tenha tratado de uma violação e refere uma sequência de toques íntimos sem consentimento. Assegura que não vai apresentar queixa, mas pode a confissão do jovem em direto ser suficiente para abrir um processo?
Em declarações ao Polígrafo, Conceição Cunha, docente e investigadora no Centro de Estudos em Investigação em Direito (CEID), da Universidade Católica Portuguesa, com interesse científico em crimes contra vítimas especialmente vulneráveis, como crimes sexuais, explica que enquanto em Portugal o crime de violação de menores é crime público, o crime de violação de maiores de 18 anos é crime semi-público. Ou seja, “o procedimento criminal depende de queixa, salvo se da violação resultar suicídio ou morte da vítima [Art. 178º Nº 1 do Código Penal]”.
Ainda que, no caso de estarmos perante uma vítima maior de idade, a violação seja considerada crime semi-público, Conceição Cunha alerta que “a lei atual permite, no caso de violação, que o Ministério Público inicie o processo, ‘sempre que o interesse da vítima o aconselhe‘ [Art. 178º Nº 2 do Código Penal]. Isto significa que qualquer pessoa pode denunciar – tendo indícios, como será o caso do vídeo – e, depois, o Ministério Público irá analisar a situação para ver se deverá dar início ao processo, ou não, tendo em conta o interesse da vítima”.
Informações recentes confirmam que a alegada vítima, hoje com 19 anos, teria apenas 15 anos quando o rapaz agora investigado pelo Ministério Público tentou contactos íntimos no Parque Aquilino Ribeiro, em Viseu. No entanto, a jovem assegura que não terá dado qualquer tipo de consentimento, afirmação que pode ser suficiente para avançar com uma queixa por violência sexual. Em Portugal, este tipo de violência comporta várias formas como a violação, o incesto, o abuso sexual de crianças, a violência em relações de intimidade, a exploração sexual, o assédio sexual, a perseguição, a pornografia, entre outras.
No Parlamento, a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues avançou com um pedido para que o Ministério Público investigue o caso. Em comunicado e “face à gravidade das afirmações”, Cristina Rodrigues afirma que deu “conhecimento das mesmas ao Ministério Público para que este investigue a veracidade dos factos e, a ser verdade, dar início à ação penal“.
“A forma leviana como estes jovens assumem um alegado crime de violação é extremamente preocupante e deve ser investigado o quanto antes. Devendo-se verificar também o estado em que se encontra a vítima para quem dirijo uma palavra de apoio”, sublinhou a deputada.
Do ponto de vista psicológico pode tornar-se redundante atribuir a uma vítima a responsabilidade de apresentar queixa decorrente de um crime que a envolveu. Carla Violante, psicóloga clínica, explica que “os riscos que corremos são, do ponto de vista individual, a impunidade do criminoso face ao silêncio de uma vítima aterrorizada, humilhada e absolutamente devastada do ponto de vista psico-emocional. E, do ponto de vista social, a normalização do ato e a legitimação do poder, real e simbólico, do agressor sobre a vítima neste tipo de crime”.
O relatório de avaliação promovido pelo Grupo de Peritos para o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (GREVIO), divulgado no dia 21 de janeiro de 2019, com incidência na aplicação da Convenção de Istambul em Portugal, aponta insuficiências e recomendações que importa ponderar em termos de iniciativa política e legislativa pelos diferentes poderes públicos, nomeadamente no que concerne ao enquadramento penal dos crimes de violação e coação sexual.
Carla Violante indica que são várias as convenções internacionais – nomeadamente a de Istambul, ratificada por Portugal – que “preconizam a intervenção do Estado, através da natureza pública do crime, como forma de ultrapassar os silêncios das vítimas consubstanciados em motivações culturais, psicológicas ou de puro desconhecimento face à lei”.
Em Portugal, em 2014, era apresentado por deputados do Bloco de Esquerda o Projeto de Lei 522/XII, que visava alterar a previsão legal dos crimes de violação e coação sexual no Código Penal. Apesar de ter sido aprovado em Reunião Plenária, a votação na Comissão rejeitou o projeto.
Posto isto, que riscos é que corremos em deixar a iniciativa do lado de uma vítima de violação? “Em grande parte dos casos assistimos, de facto, à tendência para a vítima não apresentar queixa. Não obstante a sua imprescindibilidade do ponto de vista legal, o processo de exposição, de questionamento exaustivo, de exames médicos altamente invasivos a que que uma mulher violada é exposta, representa aquilo a que chamamos o re-trauma num inevitável processo de vitimização secundária consciente para a maioria das mulheres“, explica Violante.
“Se a isto juntarmos o peso cultural das relações seculares de poder assimétrico entre géneros, a normalizada objetificação do corpo da mulher, o medo de a sua versão não ser levada a sério, a perspetiva de que a Justiça não seja capaz de desempenhar adequadamente o seu papel de proteção durante o processo judicial, a vulnerabilidade rasgante de um momento como este, entre outros fatores psicológicos idiossincráticos mas muito comuns como a auto-culpabilização, facilmente percebemos que a primeira tendência da vítima é a de fugir e não a de se expor. Fugir do agressor, do local, do ato e muitas vezes de si própria”, sublinha.
O nome da vítima foi exposto nas redes sociais, não havendo qualquer tipo de resguardo relativamente à sua identidade. Porque é que isto acontece? “Por mais que este tipo de revelação do nome das vítimas venha normalmente embrulhada nos clichês do interesse público e da verdade informativa e que até possa existir, de facto, um interesse mórbido das pessoas relativamente à identidade da vítima, penso que num caso destes esta exposição não só configura, evidentemente, um ato de extrema violência emocional, social e psicoafectiva perante uma mulher já de si absolutamente vulnerável e devastada do ponto de vista psicológico, como consubstancia um atentado à sua dignidade e aos seus mais elementares direitos que nada, absolutamente nada, pode justificar”, conclui a psicóloga.
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Avaliação do Polígrafo:
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