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| - A alegação em causa de Nuno Freitas destaca-se num artigo de opinião que publicou na edição de julho da revista “Bastão Piloto”, editada pela APAC – Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro. “Da minha experiência, senti que a separação da infraestrutura da CP, com a constituição da REFER, marcou o início do declínio do caminho-de-ferro em Portugal. Julgo mesmo que esta minha sensação é partilhada pela grande maioria dos profissionais do setor”, escreveu.
O presidente da CP discorda do modelo de gestão ferroviária imposto pela União Europeia (UE) e que foi implementado em Portugal logo no final da década de 1990, mediante a separação da infraestrutura que passou a ser gerida por uma nova empresa pública, a REFER, entretanto integrada na neófita IP – Infraestruturas de Portugal juntamente com a EP – Estradas de Portugal.
No mesmo artigo, Nuno Freitas indica outras causas para o declínio do caminho-de-ferro, nomeadamente o desinvestimento e a crise económica de 2008, “mas o dano criado na cultura ferroviária com a separação da CP e REFER, a força com que se quis impor uma divisão entre duas empresas que são siamesas, muitas vezes promovendo-se mesmo algum antagonismo, persiste até hoje com todas as consequências nocivas associadas”.
Esta transformação remonta a 1997, quando os Gabinetes do Nó Ferroviário de Lisboa e do Porto, assim como o Gabinete de Gestão das Obras de Instalação do Caminho-de-Ferro sobre o Tejo em Lisboa, foram extintos pelo Decreto-Lei n.º 104/97 que criou a REFER com o ojetivo de desenvolver, modernizar e gerir as infraestruturas ferroviárias para a abertura do setor à iniciativa privada.
Mas terá sido este o momento que “marcou o início do declínio do caminho-de-ferro em Portugal”? O que mostram os dados oficiais sobre a evolução da ferrovia?
Consultando os dados compilados na Pordata apuramos que, embora tenham sido desativados cerca de 240 quilómetros de linha ferroviária entre 1997 e 1998, a tendência de decréscimo já se verificava pelo menos desde 1986.
O facto é que em 1989, por exemplo, três anos depois da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE), mais de 540 quilómetros de linha ferroviária foram desativados.
Em 1997, ano em que foi criada a REFER, o Estado investiu nos caminhos-de-ferro nacionais quase o dobro – cerca de 444 mil euros – da quantia que tinha investido no ano anterior. O nível de investimento público foi depois oscilando nos anos seguintes, até atingir quantias mínimas a partir de 2012.
Em declarações ao Polígrafo, Manuel Tão, investigador da Universidade do Algarve, especializado em Economia dos Transportes, considera que mais do que a reforma da gestão dos caminhos-de-ferro, uma vez que esta separação entre as infraestruturas e os operadores é condizente com os modelos de gestão de outros meios de transportes – “os aeroportos estão separados das operadoras aéreas e as próprias estradas estão separadas dos operadores, sejam privados ou públicos” – o declínio dos caminhos-de-ferro é resultado de “opções políticas“.
E essas “opções políticas” tornam-se “claras” quando se compara a situação de Portugal com a da vizinha Espanha. Segundo Manuel Tão, a reforma dos caminhos-de-ferro que começou com a Diretiva 91/440/CEE fez com que a Espanha perdesse cerca de 1.500 quilómetros de linhas ferroviárias. Contudo, nos anos seguintes, “a construção de mais de 2.000 quilómetros de linha ferroviárias de alta velocidade deixou a Espanha com mais de 14.000 quilómetros de linhas ferroviárias no total”.
Em Portugal, as “opções políticas”, em contraste, passaram pelo investimento na construção de auto-estradas, quase duplicando a extensão total – de 797 para 1.252 quilómetros – no ano de 1998. Atualmente conta com mais de 3.000 quilómetros de auto-estradas e menos 1.000 quilómetros de linhas ferroviárias (na altura da adesão à CEE tinha mais de 3.600 quilómetros).
Na perspetiva de Manuel Tão, a preferência por investimento na rodovia em detrimento da ferrovia “é uma opção contra-cíclica de quem estava a governar, até hoje”, culminando na criação da IP em 2015 que “não tem cultura de transporte público e, portanto, o caminho-de-ferro será sempre uma coisa exótica dentro da Infraestruturas de Portugal“.
Conclui-se, portanto, que a alegação de Nuno Freitas não tem sustentação factual, na medida em que o declínio progressivo da ferrovia em Portugal remonta ao final da década de 1980, muitos anos antes da criação da REFER.
De resto, nos anos imediatamente subsequentes à criação da REFER não se registaram quebras substanciais no investimento, nem na extensão das linhas ferroviárias exploradas, que possam fundamentar a ideia do atual presidente da CP, ressalvando-se porém a componente mais subjetiva (“o dano criado na cultura ferroviária”) da mesma.
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Avaliação do Polígrafo:
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