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| - O consumo de leite durante a idade adulta é um assunto que divide opiniões. Há quem defenda que o leite é uma importante fonte de cálcio e há também quem afirme que os humanos só deviam beber leite em crianças, como acontece com os restantes mamíferos. Entre dos dois lados da discussão, surgem muitos mitos associados ao consumo de leite que acabam por ser partilhados nas redes sociais.
Está a ser alegado, em publicação no Facebook, que o leite “pode originar” um conjunto de doenças: doença de Crohn, asma, diabetes, cancro do cólon, leucemia, cancro da próstata, osteoporose, artrite, sinusite, doença autoimunitária, cancro dos pulmões e anemia infantil. São ainda referidos “problemas de pele (eczemas), sinusite, enxaquecas e dores nas articulações”.
Mais, sublinha-se que “o leite, particularmente o de vaca, é a mais comum das alergias a alimentos” e que “mesmo quando não se é alérgico, o leite é frequentemente intolerado no trato intestinal e o problema vai além da intolerância à lactose pois este provoca inchaço intestinal, prisão de ventre e refluxo”.
Estas alegações têm fundamento científico?
Nesta publicação não há referência a qualquer tipo de fontes, apena são referidos “estudos”, sem qualquer explicação adicional. É importante ressalvar que existem diferentes tipos de estudos – estudos observacionais, estudos prospetivos e ensaios clínicos. Nos estudos observacionais não é possível identificar uma relação causa-efeito entre o consumo de um alimento e o aparecimento de doenças, enquanto nos estudos prospetivos é analisado o consumo de um alimento e, ao fim de um determinado tempo, os investigadores observam o aparecimento da doença nos participantes.
Os ensaios clínicos são os que apresentam uma melhor visão sobre a relação entre o consumo de um alimento e o efeito que provoca no organismo, no entanto, a nível nutricional têm limitações. “O ensaio clínico é quando pegamos num conjunto de pessoas e dividimos em dois grupos: a um damos leite, a outros não damos leite. Vamos ver o que é que acontece com a doença”, explica ao Polígrafo Vitor Hugo Teixeira, nutricionista do FC Porto e professor na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto. “Só que os ensaios clínicos são virtualmente impossíveis de fazer em humanos com alimentos e doença. Porque é insustentável – quer em tempo, quer no preço – pegar em dois grupos de pessoas (a uns dar leite, a outros não dar) e esperar 20 anos que apareça uma doença”, prossegue.
“A nutrição é uma ciência muito difícil de estudar, pelo que é expectável encontrar resultados diferentes. Uma forma de atenuar esta controvérsia passa por considerar todos os estudos científicos publicados sobre um determinado tema, eliminar os de fraca qualidade e valorizar os resultados dos de melhor qualidade. Isso é feito nas meta-análises, que podem ser denominadas como ‘o estudo dos estudos'”, esclarece ainda. Há diversas meta-análises que se focam no consumo de leite e o relacionam, por exemplo, com o risco de mortalidade ou o risco de mortalidade associado a cancro e doenças cardiovasculares. Foi também publicado em junho de 2019 um artigo de revisão dos estudos observacionais sobre o efeito do leite na saúde.
Conceição Calhau, professora de nutrição e metabolismo na Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa, alerta que “a interpretação de um estudo observacional tem muito a ver com um viés do conhecimento”, explicando que um investigador pode identificar o consumo de leite como sendo a principal diferença entre o grupo de controlo e o grupo de estudo, mas “até pode não ser, [a diferença] pode estar noutras variáveis”.
No caso da publicação do Facebook, a professora considera que é “completamente seguro dizer que não existe evidência científica para esta generalização – generalização de leite e de tantas doenças”, sublinhando que “para responsabilizar um alimento tem de haver, de facto, muita evidência”, prossegue a investigadora, lembrando que “o leite não é um alimento, são vários”.
Os lacticínios são um grupo da roda dos alimentos, onde estão incluídos também o queijo, os iogurtes, o requeijão, entre outros. São alimentos com características semelhantes a nível da composição nutricional, mas que são processados de diferentes formas. Mesmo dentro do próprio leite, existem diferentes tipos: desde o leite fermentado ao leite biológico incluindo também diferentes tipos de pastagem e pasteurização.
Relação entre leite e asma, cancro da próstata, cancro do cólon e as restantes doenças
A lista de doenças referidas na publicação de Facebook é grande: doença de Crohn, asma, diabetes, cancro do cólon, leucemia, cancro da próstata, osteoporose, artrite, sinusite, doença autoimunitária, cancro dos pulmões e anemia infantil. Por outro lado, a evidência científica é pouca e não apresenta relações de causa-efeito.
“À partida, o leite não provoca nenhuma forma de cancro ou nenhuma forma de doença cardiovascular quando ingerido dentro do que é recomendado”, explica ao Polígrafo Filipa Vicente, nutricionista e professora auxiliar do Instituto Universitário Egas Moniz. A nutricionista ressalva que, até agora, apenas foi identificado “um aumento do risco de cancro da próstata [um órgão do sistema reprodutor masculino], embora não estejam muito bem identificados os mecanismos”.
Vitor Hugo Teixeira refere também, com base nas meta-análises publicadas, a existência de “um risco aumentado de 3% de cancro da próstata”, ressalvando que é um valor baixo a nível nacional. “Eu admito que eu, enquanto homem, fique a pensar. Agora, nas mulheres não há dúvida nenhuma que não terão cancro da próstata”. As meta-análises publicadas sobre o leite apresentam mais vantagens para a saúde do que desvantagens: o consumo de leite é um fator que representa uma redução do risco de aparecimento de vários tipos de cancro – como cancro da mama, do cólon, da bexiga, do pulmão e do esófago. É ainda referido que o consumo de leite pode ter efeito na diminuição do risco de doenças cardiovasculares. Uma das doenças que é referida na publicação de Facebook como sendo causada pelo consumo de leite, é o cancro do cólon, no entanto Vitor Hugo Teixeira destaca que o leite “diminui 17% o risco” de se desenvolver este tipo de tumor.
Segundo a roda dos alimentos é aconselhável ingerir entre duas e três porções de laticínios por dia. Dentro das porções recomendadas, não há evidências de que o leite cause qualquer doença. No entanto, quando a ingestão é acima da recomendada – como acontece com qualquer alimento – o leite poderá trazer consequências para o organismo.
Um exemplo é a anemia infantil, uma das doenças referidas na publicação. “O que acontece na anemia infantil é que o cálcio compete com a absorção de ferro”, explica Margarida Santos, médica com mestrado em nutrição clínica. “Quando há crianças que tomam mais do qua a dose diária de leite de vaca, às vezes ficam com um défice de ferro que pode levar a uma anemia. É uma causa muito frequente, mas estamos a falar de um consumo exacerbado. O leite nas porções recomendadas não tem mal nenhum e não vai causar doença”.
No caso da asma ou da sinusite – também referidas na publicação – existe a possibilidade de a sintomatologia associada à doença ser agravada pelo consumo de leite. “No caso da asma e das doenças respiratórias que envolvem algum compromisso da nossa capacidade respiratória, parece que os productos lácteos e a proteína do leite aumentam um pouco a produção de muco e, às vezes, pode agravar a sintomatologia”, explica Filipa Vicente. “Mas é uma pessoa que já tem a patologia. Vai agravar os sintomas, não provoca a doença”, sublinha.
Também Margarida Santos afirma que “não há evidência nenhuma” de que o leite causa asma. No entanto, a médica destaca que as pessoas que têm esta doença, normalmente “são pessoas que têm atopia, ou seja, uma grande predisposição para ter alergias e intolerâncias”, o que torna “frequente que essas pessoas tenham algum risco aumentado de alergia à proteína do leite de vaca ou intolerância”, podendo desenvolver eczemas ou outras reações alérgicas ao nível da pele.
Em qualquer um dos casos, não se deve retirar o leite da alimentação sem que haja um diagnóstico médico ou uma recomendação de um nutricionista.
Alergia à proteína do leite e intolerância à lactose
A proteína do leite de vaca – à semelhança de proteínas existentes na composição de outros alimentos como o ovo, o camarão ou o amendoim – pode causar reações alérgicas em determinadas pessoas. A alergia à proteína do leite de vaca “afeta entre 2 e 5% da população mundial, portanto é muito rara”, afirma Filipa Vicente.
“O leite, por ter proteína, é um candidato natural a um alergénico. Não tem a ver com a lactose, neste caso estamos a falar das proteínas do leite”, prossegue a nutricionista. Sendo omnívoros, os humanos estão “bastante predispostos para aceitar proteína dos alimentos” e têm “um arsenal de enzimas no sistema imune que respondem bem à maior parte dos alimentos proteicos”, porém as alergias alimentares podem desenvolver-se durante o período da infância.
No caso do leite, Filipa Vicente alerta que a inclusão do leite de vaca na alimentação dos bebés antes de completarem um ano de idade pode constituir um risco, uma vez que pode induzir uma alergia alimentar involuntária. “Se a criança beber leite de vaca antes da formação completa do seu sistema imune – antes de um ano, que é a idade recomendado para o leite de vaca – pode induzir uma resposta alérgica e ficar alérgica para o resto da vida”, explica. Em casos em que o aleitamento materno não é possível, “deve introduzir-se fórmula, porque não tem a proteína inteira, tem a proteína digerida”, acrescenta.
A alergia e a intolerância são coisas diferentes. Se por um lado a alergia é uma reação imunológica à proteína, por outro a intolerância resulta de uma má digestão da lactose. “A lactose é um hidrato de carbono, os hidratos de carbono provocam, quanto muito, intolerância”. A intolerância pode provocar cólicas fortes, diarreias, dores de cabeça e inchaço abdominal.
A intolerância à lactose pode resultar de um défice na produção da enzima lactase – que se identifica como intolerância primária – ou pode estar associada à alteração dos microrganismos existentes no intestino – a chamada intolerância secundária. Isto acontece quando se “perdem algumas bactérias [nos intestinos] e se passa a ter muito mais de outros tipos [de bactérias] que utilizam a lactose do leite para fazer fermentação”, explica Conceição Calhau acrescentando que esta situação pode estar associada a um problema intestinal. Retirar o leite ou lacticínios da alimentação não é, para a professora, o caminho certo, uma vez que deve ser diagnosticada a causa da intolerância e tratado o problema de raiz.
O leite altera o pH do corpo humano e outras afirmações
Entre os vários argumentos presentes nesta publicação de Facebook, pode ler-se que, “como todas as proteínas animais, o leite aumenta a acidez do pH do corpo humano que por seu lado despoleta uma correção biológica natural”.
“Não existe nenhum alimento que induza alterações de pH drásticas no nosso organismo. Porque, de facto, nós não sobreviveríamos a isso”, explica Filipa Vicente. “O nosso corpo tem várias defesas para manter o pH estável”, acrescenta a nutricionista referindo-se aos rins, os órgãos que têm entre as suas funções a estabilização do pH. A nutricionista alerta, no entanto, que uma alimentação altamente proteica – não unicamente o leite – poderá colocar o rim em esforço e causar problemas de saúde.
Também Margarida Santos sublinha que uma situação em que o pH do organismo está fora dos limites considerados normais constitui uma situação de urgência médica. “O que seria se alguma bebida conseguisse alterar o nosso pH sanguíneo? É grave. Se nós virmos um pH fora dos limites do normal é uma urgência”, acrescenta a médica sublinhado que essas situações “normalmente acontecem quando há uma descompensação respiratória, renal ou uma patologia grave”.
Quanto à indicação – também patente na publicação sob análise – de que o leite contém antibióticos e retira o cálcio necessário para os ossos, o Polígrafo já verificou essa matéria.
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Nota editorial: este conteúdo foi selecionado pelo Polígrafo no âmbito de uma parceria de fact-checking (verificação de factos) com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam nessa rede social.
Na escala de avaliação do Facebook, este conteúdo é:
Falso: as principais alegações dos conteúdos são factualmente imprecisas; geralmente, esta opção corresponde às classificações “Falso” ou “Maioritariamente Falso” nos sites de verificadores de factos.
Na escala de avaliação do Polígrafo, este conteúdo é:
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