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| - “Este ano não temos o Baile dos Pretos, há aí uns puritanismos. É pena porque é uma tradição antiga, mas o politicamente correto obriga-nos a estas coisas”. As palavras são de Antonino de Sousa, presidente da Câmara Municipal de Penafiel (eleito por uma coligação entre PSD e CDS-PP), e foram proferidas na última reunião do Executivo, a 16 de maio, como confirmou ao Polígrafo fonte oficial da autarquia. Embora não seja possível “confirmar com absoluta certeza se essas declarações foram proferidas exatamente assim, ipsis verbis“, já que a ata desta reunião só estará disponível dentro de alguns dias, a verdade é que foram assim citadas pelo jornal local “Verdadeiro Olhar” e corroboradas por representantes de partidos da oposição.
As festas do Corpo de Deus englobam bailes, danças populares ou “invenções”, como em tempo foram designados, e “constituíam uma contribuição obrigatória dos vários ofícios para a celebração do Corpo de Deus, cuja participação estava bem definida e decretada no Tombo das Festas do Corpo de Deus, documento de 1657”, informa a autarquia no respetivo portal.
Entre elas estão a Dança da Mourisca (representada pelos alfaiates, albardeiros e vendeiros), a Dança da Retorta (apresentada pelos sapateiros e tosadores), a Dança dos Moleiros (dada pelos moleiros do Cavalúm e do rio Sousa), a Dança das Espadas (pelos ferreiros e serralheiros). Estas chegaram mesmo a ser banidas das procissões, em 1724, mas voltaram à cidade entre 2008 e 2011.
Foi também nesse último ano que retornou a Penafiel o “Baile dos Pretos“, que se afasta “da tradição das danças de ofício e representa a história de um grupo de escravos negros alforriados, que apresentam uma vistosa dança de fitas, tal como o Baile dos Pauzinhos, mais recente, que procura o divertimento, a beleza e animação da festa”. Pode ver um exemplo da tradição neste vídeo.
Nas imagens vê-se um conjunto de pessoas com a cara tingida de preto e a dançar ao som de versos como: “O Preto é o rei dos matos / Imperador de macacos / Não posso levar avante / Pretinho andar de Sapatos / Trabalhai Pretos cachorros / Trabalhai com devoção / Já que el-rei vos deixou forros / Ide-lhe beijar na mão.”
Na última reunião de Câmara, a 16 de maio, e por decisão do presidente Antonino de Sousa (antigo deputado do CDS-PP), comunicada a todos os vereadores, foi então retirado “o Baile dos Pretos das celebrações da festa do Corpo de Deus”, substituindo-se esta prática “por outro baile / tradição”. De acordo com a autarquia, “estes bailes entram nas festas do Corpo de Deus desde o século XVII, em Penafiel”, refletindo “profissões, ofícios e não só”.
Segundo a mesma fonte, “é precisamente por a Câmara Municipal considerar que o Baile dos Pretos pode ser considerado ofensivo e socialmente censurável, que o presidente da Câmara decidiu retirar o baile das festas do Corpo de Deus e o comunicou, a todo o Executivo, na última reunião de Câmara”. A intenção foi, assim, “evitar contaminar as grandes Festas do Corpo de Deus com situações deste género, que facilmente são politizadas“.
Na perspetiva de Paulo Araújo Correia, vereador do PS na Câmara de Penafiel, esta é “uma questão da mais elementar decência humana“. Na sua página no Facebook, o socialista confessa que “foi com um misto de perplexidade e estupefação” que assistiu, na última reunião de vereação, “ao facto de o presidente da Câmara Municipal de Penafiel justificar o fim do ‘Baile dos Pretos’ por ação dos ‘puritanos‘ e do ‘politicamente correto‘”.
De acordo com o vereador da oposição, “a sua retirada das festividades do Corpo de Deus é uma questão de decência, de valorização da dignidade da pessoa humana, de respeito pelo próximo e, como tive oportunidade de lhe transmitir naquela reunião, de evolução civilizacional. Esta é uma festividade demasiado importante para o nosso povo, para ser manchada por quem confunde tradição com ofensa gratuita ao próximo”.
O “Baile dos Pretos” já foi, de resto, motivo de controvérsia em 2019: à data, a concelhia do PS recorreu à Assembleia da República e, numa pergunta dirigida à então ministra da Cultura, Graça Fonseca, os deputados socialistas Hugo Oliveira, Joana Sá Pereira, Rosário Gamboa, Bruno Aragão, Susana Correia e Cláudia Santos descreveram a dança em questão como sendo um conjunto de “pessoas caucasianas que se pintam de negro e dançam ao som destas quadras: O preto é o rei dos matos/ imperador dos macacos / não posso levar avante/ pretinho andar de sapatos”.
Num comunicado enviado à Agência Lusa, a autarquia penafidelense acusou de “profundo desconhecimento histórico e cultural e uma grande dose de hipocrisia” os deputados do PS, já que esta se trata de uma “tradição secular chamada ‘A Cavalhada’, onde se inserem diversas iniciativas e cinco bailes populares, também eles seculares, cuja recriação e recuperação histórica ocorreu entre 2008 e 2011, com o envolvimento da comunidade e de diversas associações locais”.
“Um destes bailes é denominado Baile dos Pretos e, aquando da sua recuperação, a Câmara Municipal teve o cuidado de suprimir parte das quadras que pudessem conter alguma referência ofensiva, não sendo verdade que as quadras referidas no requerimento do PS à senhora ministra da Cultura integrem o atual reportório do baile”, sublinha-se no comunicado.
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