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| - Gráficos e dados do European Organization for the Exploitation of Meteorological Satellites (EUMETSAT) e da Copernicus circulam nas redes sociais como provas de que os níveis de gelo marinho no Ártico estão a recuperar. A alegação surge como “prova” de que o aquecimento global não é real e que a atividade humana não interfere com o clima.
“Não digam em voz alta, mas o gelo do Ártico está a regressar. A cobertura está agora próxima da média de 1991-2020, bem acima da quebra de 2012 e acima de 2020. Não há sinais de catástrofe alarmista”, escreve o autor de um tweet, partilhado no fim de abril, que partilha um artigo do “Daily Ceptic”.
Os dois artigos apresentam alegações semelhantes. Num artigo publicado pela plataforma WND – que se apresenta como “uma imprensa livre para pessoas livres” – é afirmado que “a expansão do gelo marinho do Ártico até este mês [maio] está um máximo dos últimos 30 anos”, apresentando um gráfico da EUMETSAT comparativo entre os anos de 2017 e 2022.
O Polígrafo analisou os gráficos disponibilizados pela EUMETSAT, onde é possível ver que o valor registado em 2022 surge ao mesmo nível do registado em 1989. No entanto, há uma questão que é importante ressalvar: o valor registado em 2022 surge como um máximo nos últimos anos, enquanto o valor de 1989 foi um valor mínimo na altura.
Irina Gorodetskaya, investigadora na área do clima da Antártida no Instituto Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM), da Universidade de Aveiro, sublinha que não se trata de um recorde, mas sim de um valor que está “tendência natural”. “Se compararmos com os últimos anos, é o [valor] mais alto, mas comparando com o intervalo interdecil, é o mais baixo da tendência baseada na climatologia de 30 anos”.
A tendência decrescente é evidente no gráfico. É ainda indicada que a perda de área de gelo marinho ronda os 33 mil quilómetros quadrados por ano, representando uma descida de 2,5% de área por década. No entanto, como também se pode verificar pelos dados apresentados, a quantidade de gelo marinho existente em cada ano não é linear e há variações.
“É comum para os cépticos das alterações climáticas dizer ‘esta descida não é contínua, o aquecimento não é contínuo’. Isto é totalmente normal para o sistema climático porque temos uma tendência climática. É normal haver uma tendência geral que continuamos a experienciar”, esclarece.
A variação anual não deve ser interpretada isoladamente, mas sim a tendência de vários anos. A especialista apresenta uma comparação para explicar que uma grande área no inverno pode representar um grande degelo no verão: “Se compararmos este ano com o ano em que se registou o recorde mínimo – que aconteceu no verão de 2012, houve um nível mais alto de gelo marinho no mês de março do que há este ano. É comum para os cépticos das alterações climáticas dizer ‘esta descida não é contínua, o aquecimento não é contínuo’. Isto é totalmente normal para o sistema climático porque temos uma tendência climática. É normal haver uma tendência geral que continuamos a experienciar”, esclarece.
A segunda alegação relacionada com o gelo marinho do Ártico foi publicada pelo “Daily Sceptic” – um site que se afirma como desafiador da ciência ligada a uma agenda política. Segundo este artigo, os níveis de gelo marinho do Ártico “está perto da média 1991-2020, muito acima do mínimo de 2012 e superior a 2020. Segundo o relatório da Copernicus, o programa de observação da Terra da União Europeia (UE), a extensão de gelo marinho em março de 2021 era apenas 3% abaixo da medida de 30 anos”. E acrescentam: “março é a extensão máxima anual do gelo marinho no Ártico”.
O mês de março é o que apresenta um maior nível de área e volume de gelo na região do Ártico, devido às baixas temperaturas registadas durante o inverno no hemisfério norte. Por outro lado, o mês de setembro, depois do degelo do verão, é a altura em que a quantidade de gelo é, por norma, menor.
No mesmo relatório que o “Daily Sceptic” cita, os investigadores da Copernicus explicam que “nos primeiros cinco meses de 2021, a extensão diária do gelo marinho do Ártico permaneceu abaixo da média, mas geralmente acima dos mínimos de todos os tempos”, um “padrão semelhante ao observado em 2020”. Confirmam os 3% abaixo da média, mas identificam os registos de março de 2021 como sendo os “oitavos mais baixos” desde 1979. Já em setembro, o mínimo anual, os níveis de extensão de gelo marinho estavam 8% abaixo da média, o que representa “o mínimo mais elevado desde 2014”.
Francisco Ferreira, presidente da Associação Zero, sublinha que “o gelo do Ártico tem efetivamente variações ao longo do ano”, admitindo que “de momento, os valores da extensão estão do gelo estão um pouco mais próximos da mediana 1981-2012”. “Quando olhamos para uma modificação do clima, é a tendência e não a oscilações entre anos que são significativas. Os anos mais quentes desde que há registos por termómetros foram 2016 e 2020, isto é, não foi 2021, nem há uma subida da temperatura média do planeta ano após ano. Mas a tendência é inequívoca e é esse padrão que é relevador, tal como no caso da redução da área de gelo”, prossegue.
“Quando olhamos para uma modificação do clima, é a tendência e não a oscilações entre anos que são significativas”.
Os dados referentes à extensão de área e volume de gelo no mar – seja no Ártico ou na Antártida – são utilizados para medir os impactos do aquecimento global. A comparação é feita com o valor referência que corresponde à média a 30 anos entre 1981 e 2010. Nesse caso, como é possível ver nos dados divulgados pelo National Snow & Ice Data Center, os valores de registados em 2022 e em 2021, continuam abaixo da média.
O relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas das Nações Unidas (IPCC), publicado em 2019, apresentou um relatório que juntou cerca de 100 investigadores oriundos de 40 países. Nesse documento, na área das regiões polares, os cientistas escreveram: “A extensão gelo marinho do Ártico continua a diminuir em todos os meses do ano; a maior redução em setembro não tem precedentes nos últimos 1.000 anos. O gelo do Ártico tornou-se mais fino, concomitante com uma mudança para gelo mais jovem: desde 1979, a proporção de área de gelo espesso com pelo menos cinco anos diminuiu em aproximadamente 90%.”
“A extensão gelo marinho do Ártico continua a diminuir em todos os meses do ano; a maior redução em setembro não tem precedentes nos últimos 1.000 anos”.
Um estudo publicado pela NASA, em 2018, revela que o crescimento da área e volume do gelo marinho tem vindo a registar um crescimento mais rápido durante os meses de inverno. No entanto, no verão, esse crescimento é contrabalançado pelo degelo causado pelas altas temperaturas durante o verão.
“Infelizmente não é um ponto de viragem de que o gelo está a recuperar, não o vemos”, afirma Irina Gorodetskaya. “Está dentro da tendência e irá continuar. Temos os modelos de observação no Ártico que estão em concordância – na Antártida não tanto – e há um maior conhecimento que mostra que esta tendência irá continuar”, prossegue. Também Francisco Ferreira destaca que a perspetiva avançada pela Agência Espacial Europeia é de que irá passar a haver “verões sem gelo no Ártico em 2050”.
Ambas as alegações foram também verificadas por fact checkers das agências de notícias Reuters e AFP.
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Este artigo foi desenvolvido no âmbito do European Media and Information Fund, uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian e do European University Institute.
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