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| - Depois de se saber que Portugal poderá vir a receber 6,9 milhões doses de vacinas contra a Covid-19, o Primeiro-Ministro, António Costa, demonstrou o seu desejo de que esta seja “universal e gratuita”. “Confiamos que a Direção-Geral da Saúde (DGS) defina os critérios que devem obedecer à vacinação progressiva, universal e gratuita da população portuguesa”, disse o chefe do Governo durante a visita ao centro hospitalar de Gaia e Espinho, realizada na semana passada.
A resposta da DGS chegou no dia a seguir: na conferência de imprensa de apresentação do boletim epidemiológico relativo à situação do novo coronavírus em Portugal, Graça Freitas assumiu que, “se a vacina for de facto muitíssimo eficaz e o valor acrescentado para a saúde pública for muito grande, pode ser considerada uma metodologia de obrigatoriedade de vacinação“.
A diretora-geral da Saúde defendeu que “a legislação portuguesa permite que, em situação de epidemia e para defesa da saúde pública, uma vacina possa ser obrigatória” – e acrescentou que a decisão sobre o tema “ainda não está fechada”.
O Polígrafo questionou vários constitucionalistas e professores de Direito sobre se a Constituição da República Portuguesa permite que a vacina contra a Covid-19 seja obrigatória e de que forma pode ser essa decisão efetivada. A avaliação é idêntica à da DGS: se estiver em causa a saúde pública, é possível.
“A questão deve ser analisada à luz específica da vacina em causa ou da específica ameaça de saúde pública à qual a vacina vise responder”, explica Tiago Serrão, constitucionalista e professor de Direito na Universidade de Lisboa, ao Polígrafo. “Tratando-se de uma vacina para a Covid-19, a Constituição da República Portuguesa não é impeditiva do estabelecimento de uma vacinação obrigatória, dado que está em causa – de modo muito visível – a proteção da saúde pública”, assevera.
O professor lembra que na Constituição “há um dever de proteção da saúde pública por parte do Estado”, e, no caso concreto da Covid-19, “o vírus está cá e é uma ameaça real”. “A saúde pública prevalece em termos constitucionais”, reforça.
“A saúde pública prevalece em termos constitucionais”, explica Tiago Serrão, constitucionalista e professor de Direito na Universidade de Lisboa.
O dever de proteção da saúde pública pelo Estado é a justificação igualmente apresentada por Jorge Reis Novais, professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e especialista em Direito Constitucional. “Se estivesse em causa apenas a saúde das pessoas [que não querem tomar a vacina], era com elas. Cada um decide a sua vida, o Estado não tem de se meter”, diz. O problema, como refere, “é que se a pessoa não se vacinar e contrair o vírus, infeta outras pessoas e põe em causa a vida de outros cidadãos”. A partir daí, “já não é só com ela, é com toda a sociedade”.
O Polígrafo questionou vários constitucionalistas e professores de Direito sobre se a Constituição da República Portuguesa permite que a vacina contra a Covid-19 seja obrigatória e de que forma pode ser essa decisão efetivada. A avaliação é idêntica à da DGS: se estiver em causa a saúde pública, é possível.
André Dias Pereira, diretor do centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra e especialista na área de Direito da Saúde, lembra que “a vacina tem em vista proteger o próprio, mas, sobretudo, tem em vista proteger a sociedade”, ou seja, “há um benefício para os outros”.
Se de um lado da balança está a proteção da saúde pública, do outro lado está o direito à liberdade e à integridade física, também consagrados na Constituição. A toma de qualquer medicamento necessita, à luz do Direito da Saúde, do consentimento do paciente, lembra Dias Pereira, e o cidadão pode recusar – à exceção dos casos de saúde mental, “quando se está a pôr em perigo bens jurídicos”. Reis Novais reconhece que a vacinação obrigatória é, de facto, “uma restrição à liberdade da pessoa e por isso só numa situação muito excecional é que pode ser imposta”. Mas não duvida que “para proteger a vida e a saúde das pessoas, poderia ser um caso em que se justificaria”.
Para que a vacina seja considerada obrigatória, terá de ser aprovada uma lei na Assembleia da República – ou um decreto de lei do Governo autorizado pelo Parlamento – que defina os critérios da obrigatoriedade e as consequências da recusa. “Só o Parlamento e só o Governo com a autorização da Assembleia da República podem restringir estes direitos, liberdades e garantias”, explica Tiago Serrão. O professor de Direito exemplifica esse imperativo legal como o facto da decisão de imposição de quarentena obrigatória à chegada aos Açores ter sido, entretanto, declarada inconstitucional.
Para que a vacina seja considerada obrigatória, terá de ser aprovada uma lei na Assembleia da República – ou um decreto de lei do Governo autorizado pelo Parlamento – que defina os critérios da obrigatoriedade e as consequências da recusa.
Sem que o Parlamento aprove a lei, nenhuma entidade pode impor a toma da vacina, fale-se de uma escola, um lar ou um empregador. “Nunca pode ser o empregador a determinar por si. Por cima dele tem de haver, a montante, uma lei da Assembleia da República ou um decreto de lei do Governo autorizado. Não é uma decisão que ele possa tomar por si mesmo, não tem esse poder”, esclarece Tiago Serrão.
A própria criação da lei tem de ser justificada e argumentada, neste caso com evidências científicas. Aqui entra o princípio da proporcionalidade, que está também consagrado na Constituição:
- Art. 18.º – ponto 2 – “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Dias Pereira explica por outras palavras: “O princípio da proporcionalidade diz-nos que devemos ser o menos invasivos, intrusivos, agressivos possível.” Antes de elaborar e votar a lei, será necessário que a Assembleia da República analise todos os dados sobre a vacina – desde a eficácia aos possíveis efeitos secundários –, assim como o impacto que terá no combate à pandemia de Covid-19.
André Dias Pereira, diretor do centro de Direito Biomédico da Universidade de Coimbra e especialista na área de Direito da Saúde, lembra que “a vacina tem em vista proteger o próprio, mas, sobretudo, tem em vista proteger a sociedade”, ou seja, “há um benefício para os outros”.
Tiago Serrão considera, por seu turno, que “a Constituição não apresenta nenhum obstáculo a uma vacinação obrigatória para a Covid-19, mas já teria se se tratasse de uma vacinação para algo absolutamente residual”, como um vírus que tivesse “afetação apenas noutra esfera do globo”. Para o professor, “evidentemente que, nesse caso o Estado português não poderia impor a vacinação obrigatória”.
É o primeiro caso de obrigatoriedade de uma vacina?
A vacina para a Covid-19, se se confirmar a toma obrigatória, não será a primeira a ter este estatuto. Atualmente, existem duas vacinas consideradas obrigatórias por lei: a antitetânica e a antidiftérica – que são tomadas, na infância, em conjunto com a da tosse convulsa. Ambas estão regulamentadas pelo decreto de lei n.º 44198 – aprovado em 1962, ainda antes da aprovação da Constituição da República Portuguesa que rege o país e que data de 2 de abril de 1976. No mesmo, lê-se:
- Art.1 – “É obrigatória a vacinação antidiftérica e antitetânica de todos os indivíduos domiciliados no País, dos 3 aos 6 meses de idade, com administração de doses de reforço, pela primeira vez, entre os 18 e os 24 meses e, pela segunda vez, entre os 5 e os 7 anos de idade”;
- Art. 2 – “Nenhum indivíduo com menos de 10 anos poderá frequentar ou fazer exame em qualquer estabelecimento de ensino sem que, por certificado médico ou atestado da respetiva autoridade sanitária, prove que se encontra devidamente vacinado contra a difteria”;
- Art. 4 – “Nenhum indivíduo poderá frequentar ou fazer exame em qualquer estabelecimento de ensino ou ser admitido em quaisquer funções públicas, dos corpos administrativos, dos organismos corporativos e de coordenação económica ou das pessoas coletivas de utilidade pública administrativa sem que, por certificado médico ou atestado da respetiva autoridade sanitária, prove que se encontra devidamente vacinado contra o tétano.”
Este conceito de obrigatoriedade não advém de uma sanção direta ou uma recusa de direitos fundamentais. Caso opte por não tomar a vacina – sem que haja uma razão médica para tal –, o cidadão poderá ser excluído de determinadas atividades da sociedade. Esta restrição é, no entanto, cada vez menos aplicada. “O que existe é legislação que obriga a ter determinadas vacinas em dia quando as pessoas entram, por exemplo, na Função Pública ou em determinados ciclos de escolaridade”, diz ao Polígrafo Carlota Louro, professora de Epidemiologia na Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa. “Mas não há obrigatoriedade, ninguém pode processar juridicamente os pais que não vacinam uma criança para as vacinas da primeira infância”, acrescenta.
Caso opte por não tomar a vacina – sem que haja uma razão médica para tal –, o cidadão poderá ser excluído de determinadas atividades da sociedade. Esta restrição é, no entanto, cada vez menos aplicada.
A lei que regulamenta a obrigatoriedade das vacinas antitetânica e antidiftérica “não é uma imposição legal de âmbito universal”, mas as entidades que assim o desejarem podem exercê-la “quando as pessoas se candidatam a determinadas funções”. Dias Pereira explica que o termo “‘obrigatório’ é a chamada coercitividade indireta. Por exemplo, uma condição para se inscrever na escola primária, para ter acesso à função pública, para ter acesso a um conjunto de trabalhos”. “Muitas vezes, quando as pessoas pensam em obrigatório, acham que a GNR vai a casa delas. Obviamente que não”, sublinha o especialista.
Ou seja, apesar da lei, existe liberdade de escolha, mas essa pode acartar consequências: “Existe a liberdade de a pessoa não ir ao centro de saúde, de a pessoa estar no centro de saúde e dizer que não quer. Mas depois poderá ter problemas em função da legislação que se vier a aprovar.”
O diretor do centro de direito biomédico considera que, no caso da Covid-19, “não tem de haver nenhum crime, nenhuma coima” uma vez que “o direito da saúde pública faz-se por indução, educação, formação e por criar confiança”. Já Reis Novais e Tiago Serrão defendem que, caso haja uma legislação para tornar a esta nova vacina obrigatória, deverá também haver alguma sanção. “Terá de haver uma regulação sob pena de a obrigatoriedade ser um vazio”, explica Serrão.
Reis Novais e Tiago Serrão defendem que, caso haja uma legislação para tornar a esta nova vacina obrigatória, deverá também haver alguma sanção.
Estar no Plano Nacional de vacinação significa que é obrigatória?
O Plano Nacional de Vacinação (PNV) não tem um caráter obrigatório. Trata-se de um fundo, incluído no Orçamento do Estado, que tem como objetivo financiar e tornar acessível à população um conjunto de vacinas, aprovadas pela Assembleia da República. Este plano foi criado em 1965 pelo decreto-lei n.º 46628 e inclui um conjunto de vacinas desde o nascimento até à idade adulta.
Apesar de António Costa ter anunciado a intenção de disponibilizar a vacina para a Covid-19 de forma gratuita, ainda não há nenhuma decisão oficial sobre a sua inclusão no PNV. Numa entrevista à “TSF“, realizada a 24 de julho, Marta Temido disse que “as vacinas são um bem público”, que “há um interesse público maior no acesso às vacinas e, portanto, ninguém pode ser deixado para trás”. Porém, quando foi diretamente questionada sobre a inclusão desta nova vacina no PNV, a ministra respondeu que “há ainda muitas zonas que são desconhecidas até do ponto de vista técnico e que precisam de mais trabalho”.
As declarações proferidas pela ministra da Saúde deram origem a uma publicação falsa, partilhada nas redes sociais, onde se afirmava que a “vacina da Covid-19 não estará no Plano Nacional de Vacinação e será paga por quem a quiser tomar”. O Polígrafo explicou-lhe tudo sobre o assunto aqui.
A verdade é que há muitas questões por esclarecer sobre a possível eficácia e segurança de uma vacina contra a Covid-19 e é necessário reunir todas as informações antes de ser tomada qualquer decisão sobre a distribuição da mesma pela população. “O Estado não pode estar a impor uma vacina se de facto não houver garantias de duas coisas: ser eficaz e ser segura”, lembra Tiago Serrão.
É mesmo necessário que toda a população tome a vacina?
A imunidade de grupo tem sido falada como uma das possibilidades para travar a pandemia de Covid-19 e resulta de dois fatores, como explica ao Polígrafo Helena Canhão, epidemiologista e investigadora na Nova Medical School da Universidade Nova de Lisboa: “o número de pessoas que está protegida num determinado momento [por infeção prévia ou por vacina] e a duração dessa imunidade.” A principal questão é que ainda não se sabe que duração irá ter a imunidade causada pela vacina contra a Covid-19.
A imunidade de grupo resulta de dois fatores: “o número de pessoas que está protegida num determinado momento [por infeção prévia ou por vacina] e a duração dessa imunidade.”
“Ainda não há informação suficiente para poder sequer julgar-se por quanto tempo causará a vacina imunidade, se por um ano ou por mais tempo”, diz também Carlota Louro. “Isso é um fator importantíssimo. Não podemos querer utilizar a vacina como a forma mais robusta de criar imunidade de grupo se tivermos de a dar anualmente”, acrescenta.
Em causa, estão duas hipóteses: ou a vacina cria imunidade prolongada – como acontece, por exemplo, com o sarampo – ou a vacina produz um efeito protetor temporário e é necessária a toma de um reforço periodicamente – como no caso da gripe. Essa informação, que é ainda desconhecida, é importante para a gestão das doses disponíveis.
No primeiro cenário, em que a vacina causa uma imunidade prolongada, “pode partir-se para a estratégia de vacinar o maior número de pessoas possível”, sugere Helena Canhão. Já para o segundo caso, que implica uma diminuição da imunidade – “e como estamos perante um agente que é um coronavírus, pela experiência que há de outros coronavírus é provável que a imunidade decaia ao longo do tempo depois da vacinação”, lembra Carlota Louro – as primeiras vacinas deverão ser disponibilizadas aos grupos de maior risco, por forma a evitar internamentos graves e mortes.
A falta de informação sobre as características da vacina é também uma das preocupações da Direção-Geral da Saúde, que ainda não definiu qual o método de distribuição que será aplicado em Portugal. “Teremos de esperar, saber as características da vacina, saber o valor acrescentado para a saúde pública, saber a sua proteção, a sua eficácia, a sua segurança, a sua qualidade, para depois podermos, com maturidade, tomar essa decisão”, disse Graça Freitas na conferência de imprensa desta sexta-feira.
A falta de informação sobre as características da vacina é também uma das preocupações da Direção-Geral da Saúde, que ainda não definiu qual o método de distribuição que será aplicado em Portugal.
Atualmente existem mais de 165 projetos de vacina em curso, segundo um artigo do “The New York Times”. Dessas, 32 estão já em fase de testes em humanos. A 11 de agosto, a Rússia anunciou a primeira vacina contra Covid-19 a ser registada no mundo, apesar das dúvidas sobre a eficácia e segurança da mesma. Marta Temido partilhou das reservas da Organização Mundial de Saúde sobre a Sputnik V, dizendo que “é muito importante acelerar o processo de investigação em relação à descoberta de uma vacina eficaz, mas não se pode, nesse processo, sacrificar nem a segurança nem a eficácia terapêutica”. Também a 17 de agosto, a China aprovou a primeira patente de uma candidata a vacina contra a Covid-19.
Na Europa, 68% dos cidadãos europeus desejam ser vacinados contra a Covid-19, segundo um estudo realizado por diversas universidades europeias, incluindo a portuguesa Nova SBE. Mais de sete mil pessoas da Alemanha, Dinamarca, França, Itália, Holanda, Portugal e Reino Unido foram questionadas sobre esta vontade em abril e junho deste ano. Em Portugal, 76% afirma que quer receber a vacina, 7% que não quer e 18% que não tem a certeza. Segundo os dados divulgados, Portugal é o único país em que a intenção de tomar a vacina aumentou entre abril e junho e um dos que tem uma menor taxa de rejeição à mesma.
Avaliação do Polígrafo:
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