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| - O título é aliciante: “Prémio Nobel em Medicina quebra o silêncio e revela: O câncer não é uma doença… Mas sim uma deficiência”. Neste artigo publicado em 2017 afirma-se que Otto Warburg (1883-1970), um investigador na área da Química e da Medicina que foi galardoado com o Prémio Nobel da Medicina em 1931, anunciou que a deficiência de oxigénio no corpo é a principal causa para o aparecimento de células cancerígenas e tumores. “Ele disse: ‘Para o cancro, há apenas uma causa nobre. Resumida em poucas palavras, a principal causa do cancro é a substituição da respiração de oxigénio nas células normais do corpo por uma fermentação do açúcar”, destaca-se no texto da publicação.
“A deficiência de oxigénio leva o corpo humano a um estado de acidez. Dr. Warburg também descobriu que as células cancerígenas são anaeróbias (não respiram oxigénio) e não podem sobreviver na presença de altos níveis de oxigénio, como é em um estado alcalino. Segundo o Prémio Nobel da Medicina, ‘todas as células normais têm uma exigência absoluta de oxigénio, mas as células cancerígenas podem viver sem oxigénio – uma regra sem exceção’. Ele também destacou: ‘Prive uma célula de 35% do seu oxigénio durante 48 horas e ela pode tornar-se cancerígena’”, prossegue o texto, apresentando no final duas receitas classificadas como “milagrosas”.
Mas esta informação é falsa. Otto Warburg dedicou a sua vida a estudar os processos da respiração celular, incluindo a fotossíntese – processo pelo qual as células das plantas consomem dióxido de carbono e libertam oxigénio. A atribuição do Prémio Nobel em Medicina, em 1931, deveu-se “à sua descoberta sobre a natureza e modo de ação da respiração das enzimas”.
O que Warburg descobriu – e que ficou conhecido como o “Efeito Warburg” – foi que uma célula cancerígena é anaeróbia, ou seja, prossegue numa reação química que ocorre da fermentação e da glicólise, sem que haja envolvimento de oxigénio, produzindo ácido lático. No entanto, não é a falta de oxigénio que torna a célula cancerígena, mas é a célula cancerígena que deixa de consumir este elemento, continuando a existir oxigénio no sangue à volta da célula afetada.
Como se explica em artigo publicado na plataforma McGill (integrada no Office for Science and Society da McGill University, Montreal, Canadá, que se dedica a desmistificar informações falsas na área das ciências), as receitas alcalinas não têm qualquer fundamento para a prevenção ou para o tratamento do cancro.
A teoria de Warburg esteve adormecida durante muitos anos até que o físico Keith Brewer apresentou o seu estudo onde explicava “como o potássio e o cálcio podiam controlar o transporte de glucose e oxigénio para as células e como é que a membrana celular interfere com o sistema de transporte”.
O estudo de Keith Brewer, publicado em 1984, justifica o aparecimento de células cancerígenas com a impossibilidade de a célula receber oxigénio, o qual é transportado pelo cálcio, mas continuar a receber glucose, por sua vez transportado pelo potássio. Desta forma, a célula torna-se anaeróbica e, por causa da fermentação, produz ácido lático, baixando o pH para 6,5. Com este nível de pH, segundo Brewer, o ADN da célula, incluindo os aminoácidos que a célula passaria a receber, são alterados e desenvolvem-se elementos tóxicos que contaminam o corpo à volta do tumor, onde irão crescer mais células tóxicas que acabam por contaminar todo o corpo. “O resultado”, reforçou Brewer, “é o ‘Efeito Warburg’, que diminui o pH das células, reduz o seu abastecimento de oxigénio e causa alterações no DNA característico do cancro”.
A solução apresentada no mesmo estudo é um tratamento à base de césio, um químico semelhante ou comparável ao potássio que irá levar até à célula o oxigénio de que esta necessita. “Estes testes foram feitos em mais de 30 humanos. Em cada caso, a massa do tumor desapareceu. Também as dores e efeitos associados ao cancro desapareceram em 12 a 36 horas”, escreveu Brewer no seu estudo.
No entanto, os resultados do grupo de 30 pacientes são questionáveis: “Brewer refere-se ao Dr. Hellfried Sartori (também conhecido como Prof. Abdul-Haqq Sartori), com quem terá alcançado esta incrível parceria na área de Washington D.C. Este é o mesmo Dr. Sartori que em julho de 2006 foi preso na Tailândia por fraude e por praticar medicina sem licença. Ele cobrava aos pacientes desesperados até $50.000 para ‘a cura do cancro’ que incluía injeções de clorídrico de césio”, informa a plataforma McGill. Sartori esteve preso cinco anos no Estado norte-americano de Virgínia e nove meses em Nova Iorque por fraude e por utilização de terapias não aprovadas. Para além disso, desde 2010 que está a ser processado por tribunais australianos pela morte de pelo menos cinco pacientes que, em 2005, receberam o tratamento com clorídrico de césio.
Embora o césio seja um metal alcalino, de facto, a sua ingestão ou injeção intravenosa não significa que o pH do sangue será alterado. “Não importa o que comemos ou bebemos, o nosso sangue contém substâncias que conseguem agir como ácidos ou básicos para manter o pH do sangue nos 7.4”, explica a plataforma McGill. “O único fluído corporal que responde a uma dieta em termos do pH é a urina”, sublinha, acrescentando que “a ideia de uma dieta ‘alcalina’ para prevenir e tratar o cancro pode soar sedutoramente simples, mas na realidade é apenas simplista”.
A utilização do nome de Otto Warburg, por ter sido galardoado com o Prémio Nobel da Medicina, é apenas um fator de credibilização de uma informação que é falsa e que serve para promover receitas e dietas. Apesar de ter alguns artigos publicados que se relacionam com o metabolismo das células cancerígenas, Warburg nunca apresentou a dieta alcalina como uma forma de prevenção e tratamento do cancro.
Este tipo de mensagens falsas e sem evidências científicas que incentivam às curas milagrosas podem tornar-se perigosas, uma vez que as pessoas podem abandonar os tratamentos cientificamente comprovados para seguir estes mitos, colocando a sua saúde em risco.
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Nota editorial: este conteúdo foi selecionado pelo Polígrafo no âmbito de uma parceria de fact-checking com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam naquela rede social.
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Falso: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
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