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| - Numa entrevista à TSF a propósito da celebração dos 31 anos de existência daquela estação de rádio (assinalada com o lançamento do “Sons da História”, um site interativo que percorre a História de Portugal e do mundo nas últimas três décadas), o ex-Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, fez ontem questão de traçar um risco bem vincado entre si e a imprensa.
Segundo Cavaco, a comunicação social “nunca gostou muito” de si, “ou quase nada”, porque, disse o também ex-Primeiro-Ministro, “tinha determinados princípios de que não me afastava”. O homem que conseguiu duas maiorias absolutas para o PSD “achava que um Primeiro-Ministro, um Governo, devia dar mostras de independência total em relação a todos os grupos, incluindo a comunicação social.” Talvez por isso, sublinhou Cavaco, “durante os meus mandatos de primeiro-ministro e os meus mandatos de Presidente da República, eu nunca atendi uma chamada telefónica de um jornalista nem nunca telefonei a nenhum jornalista.”
Mas o facto de não atender nem telefonar para jornalistas quer dizer que Cavaco pura e simplesmente não comunicava com os profissionais da imprensa, como o ex-Presidente manifestamente quer dar a entender? Resposta: nem por isso.
No seu livro “Confissões de Um Director de Jornal”, José António Saraiva, que dirigiu o Expresso durante 21 anos (entre 1985 e 2006), narra uma série de conversas pessoais que teve com Cavaco na residência oficial do Primeiro-Ministro, a seu convite. Durante esses diálogos – que ocorriam também com outros diretores de jornais, quase sempre a convite do então Primeiro-Ministro), o social-democrata aproveitava para passar ao jornalista mais influente do país as mensagens que julgava politicamente relevantes, sabendo que muito provavelmente as mesmas teria eco em futuras edições daquele semanário.
Na mesma obra, Saraiva faz mais uma revelação indiscreta: o ex-primeiro-ministro escreveu-lhe várias cartas, umas mais relevantes do que outras. Em comum, o facto de todas terem uma história e um enquadramento político relevantes. Três exemplos:
1- QUANDO AS NOTÍCIAS CHEGAM PELA MÃO DE UM AGENTE DA GNR
Em janeiro de 1990, José António Saraiva pediu uma entrevista a Cavaco Silva. O então Primeiro-Ministro aceitou, mas com uma condição: ao contrário do que planeara, o diretor do Expresso não poderia levar consigo Joaquim Vieira, o seu diretor-adjunto, conhecido por ser um duro entrevistador. Sem condições para aceitar a imposição de Cavaco – seria muito difícil explicar internamente que cedia a uma imposição do chefe do Executivo -, Saraiva recorreu aos préstimos de Marques Mendes para desbloquear o impasse. Alguns dias depois, o então influente ministro de Cavaco Silva telefonou-lhe a informá-lo de que obtivera uma solução de compromisso. Mas pediu-lhe um favor especial: que estivesse no local da entrevista meia hora antes, para que Cavaco pudesse falar-lhe a sós. “Quando chego a São Bento”, narra o jornalista, “recebe-me numa salinha contígua ao seu gabinete e expõe-me rapidamente a situação:
– Peço-lhe para que na entrevista não me faça nenhuma pergunta sobre as presidenciais porque vou tomar uma posição sobre o assunto esta semana e fá-lo-ei através do Expresso, mas só lha posso revelar na sexta-feira. Se me fizer perguntas terei de lhe dar respostas vagas. Portanto, não me pergunte nada – e eu far-lhe-ei chegar na sexta-feira a informação sobre o que o PSD vai fazer. E será uma decisão inesperada.”
Promessa feita, promessa honrada: na sexta-feira, por volta da hora do almoço, um estafeta da GNR levou ao Expresso um envelope lacrado com a palavra “secreto” escrita por fora. Lá dentro, Saraiva encontrou uma folha escrita à máquina onde Cavaco anunciava o apoio implícito do PSD à candidatura de Mário Soares. Dizia assim:
No próximo Congresso do PSD vou propor que o partido não apresente qualquer candidato às eleições presidenciais do próximo ano, caso o dr. Mário Soares se recandidate. O PSD deve contudo estabelecer um compromisso directo com o povo português quanto aos pressupostos em que assenta a sua decisão de não apresentar candidato presidencial próprio.
É inegável que o povo português maioritariamente apoia a forma com o dr. Mário Soares te exercido a sua presidência. Sendo assim, estando o PSD no Governo, e tendo presente as exigências que o desafio da Europa de 1992 coloca ao país, deve o PSD adoptar uma postura ditada exclusivamente pelo interesse nacional e abster-se de contribuir para o desenvolvimento de tensões entre o Governo e o Presidente da República.
Não deve ser o PSD a dar passos que afectem a cooperação institucional entre o Governo e o Presidente da República e que prejudiquem a estabilidade política que tão necessária é à realização do projecto de desenvolvimento e modernização que defendemos para o país. Para o PSD as eleições onde irá estar realmente em causa o modelo de sociedade que Portugal quer construir para a década de 90 são as de 1991 para a Assembleia da República e é nelas que deve concentrar todos os seus esforços.
2 – OBRIGADO, SENHOR ARQUITETO
Quatro anos depois, nova missiva, enviada no dia seguinte às eleições europeias de 1994. Algures em 1993, José António Saraiva vaticinara, num artigo no Expresso, uma “hecatombe” eleitoral do PSD. A realidade não lhe daria razão: o partido conseguiu um honroso e inesperado empate técnico com o PS. Cavaco não perdeu a oportunidade de o assinalar:
Sr. Arquitecto,
A caminho da Colômbia não quero deixar de agradecer-lhe a sua segunda previsão consecutiva de “hecatombe” eleitoral para o PSD, agora nas europeias. Há quem pense que não é forma muito correcta de fazer jornalismo (há mesmo quem diga pior…) mas eu julgo que nos faz jeito e por isso agradeço. Contudo, talvez seja ocasião para mudar de empresa de sondagens porque agora a credibilidade foi mesmo por água abaixo.
Com consideração e estima,
Aníbal Cavaco Silva
3 – O “GRITO DE INDIGNAÇÃO” PERANTE A “PERSEGUIÇÃO POLICIAL”
Dois meses antes de Cavaco pôr fim ao “tabu”, anunciando a renúncia à liderança do PSD, Fernando Lima, seu assessor de imprensa, telefonou a José António Saraiva a dar-lhe conta do desconforto do Primeiro-Ministro com a investigação que um jornalista do Expresso se encontrava a realizar sobre as obras que o governante decidira fazer na sua casa particular, situada na Travessa do Possolo, em Lisboa. José António Saraiva decidiu então não interferir no trabalho do jornalista. Não satisfeito com a pressão feita pelo seu assessor, no dia 21 de Novembro de 1994 foi o próprio Cavaco Silva que, através de carta, fez chegar a sua indignação ao diretor do jornal mais poderoso do país:
Lisboa, 21 de Novembro de 1994
Exm.º Senhor
Arquitecto José António Saraiva
Director do Expresso
Não posso deixar de comunicar a V. Ex.ª alguns factos insólitos de que tive conhecimento na passada semana, envolvendo um jornalista que afirma ser do vosso semanário, e que me fizeram lembrar atitudes de tipo policial do passado que eu julgava incompatíveis com a democracia em que vivemos.
Um pedreiro, que foi encarregado de umas obras de reparação e remodelação que a minha mulher e eu decidimos efectuar no andar onde moramos há 27 anos, fez chegar ao nosso conhecimento que anda a ser perseguido por um jornalista de nome João Ramos de Almeida, que diz pertencer ao Expresso, inquirindo-o sobre os trabalhos que realizou e o que viu na nossa casa. Mais acrescentou que o referido jornalista anda também a interrogar os fornecedores onde foram comprados s materiais utilizados nas obras e que uma vez se terá mesmo apresentado como sendo polícia da Judiciária.
Mas, Sr. Director, o insólito inquérito “policial” não fica por aqui. O referido jornalista passou seguidamente a inquirir um artitecto das mnhas relações familiares, a quem a minha mulher pediu que fizesse as plantas a apresentar à Câmara Municipal de Lisboa, sobre as pequenas obras de remodelação a realizar na casa, para que tudo se processasse numa legalidade exemplar. Mais uma vez queria o jornalista ser informado de tudo sobre a nossa casa.
Mas verdadeiramente estupefacto ficou o arquitecto quando o jornalista lhe disse que ele não devia surpreender-se com as perguntas porque em França até já tinham sido presos três ministros, “por coisas como estas”.
Chegado aqui, Sr. Director, e estando certo que V. Exª é estranho a esta insólita perseguição “policial”, não posso deixar de lhe expressar o meu mais veemente protesto. Há limites para tudo. Em democracia tem que haver limites para a perseguição à vida privada dos cidadãos.
Será que a minha mulher, lá por eu ser Primeiro-Ministro, não pode remodelar e reparar a casa de banho da nossa casa? Será que não pode mandar fechar a varanda? Sendo certo que nunca ficámos a dever nada a ninguém.
Estando certo que não é este tipo de jornalismo que V. Exa. Defende, permita-me este desabafo, que é também um grito de indignação.
Com os melhores cumprimentos,
Aníbal A. Cavaco Silva
O Expresso acabou por não publicar nada sobre o tema, satisfazendo o desejo de “discrição” de Cavaco. Talvez por isso, José António Saraiva ficou altamente surpreendido quando recebeu um telefonema da jornalista do “Público”, Áurea Sampaio, a pedir-lhe uma reação ao facto de Cavaco Silva ter enviado ao Parlamento um dossier sobre o assunto. “Andei eu a tratar do assunto com todo o cuidado e discrição – para o próprio primeiro-ministro o vir expor na praça pública! Não publicou o Expresso qualquer notícia sobre o assunto, porque não chegou a conclusões firmes sobre eventuais irregularidades – para vir o primeiro-ministro divulgá-lo!”
Avaliação do Polígrafo:
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