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| - A queixa da Associação ProPública foi dirigida ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e à Provedora de Justiça, “visando eliminar as restrições existentes, por forma a que todos possam ter acesso efetivo, livre e direto aos serviços públicos sem necessidade de marcação“.
No comunicado de 25 de novembro sublinha-se que “a marcação com antecedência para atendimento presencial nos serviços públicos era uma exigência resultante das medidas de mitigação da pandemia Covid-19, apenas justificada legalmente por força do estado de emergência. Portugal não está em estado de emergência desde 30 de abril de 2021. O estado de alerta, que cessou aliás em 30 de setembro deste ano, não permitia as restrições de acesso que as estruturas da Administração continuaram e continuam a impor. Isto é: o direito dos particulares a serviços públicos acessíveis, expeditos e não discriminatórios está a ser ofendido há mais de um ano e meio“.
“A situação atual, que tem afetado dezenas de milhares de pessoas, é injusta, ilegal e inconstitucional, lesando em especial as camadas mais vulneráveis da população. A ProPública reconhece o esforço da maioria dos funcionários que, nos últimos anos e apesar das dificuldades sociais e organizativas, deram o seu melhor para servir o interesse público. Mas, simultaneamente, chama a atenção para o princípio de que a Administração Pública existe para servir os cidadãos e não os interesses próprios de funcionários e burocratas. Os direitos de cidadania não são compatíveis com uma cultura organizativa de distanciamento, opacidade e autoritarismo“, defende a ProPública.
Entretanto, no dia 28 de novembro, o PSD questionou o Governo sobre esta matéria, através de um requerimento dirigido à ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, indicando que a bancada parlamentar do partido tem recebido “diversos relatos de serviços da Administração Pública que mantêm a exigência de agendamento prévio e obrigatório para realização do atendimento ao cidadão“.
Os deputados do PSD pedem explicações sobre “qual o motivo justificativo para que se mantenha, em tempos de normalidade, a exigência de marcação prévia para efeitos de atendimento presencial, a qual era justificada legalmente pela excecionalidade do período de pandemia da doença Covid-19″.
Contactado pelo Polígrafo, o presidente da ProPública – que se assume como “a primeira ONG portuguesa dedicada ao direito do interesse público” -, Agostinho Pereira de Miranda, salienta que a associação recebeu queixas de situações de “bloqueamento” no acesso a determinados serviços públicos. Foram estes relatos que motivaram a apresentação da queixa contra a generalizada exigência de agendamento prévio para que um cidadão seja atendido nos serviços da Administração Pública.
“Não há nenhuma lei que tenha dito que só atendem por agendamento, esse resultado acaba por acontecer porque os agendamentos completam aquele dia e, portanto, já não existem vagas. É uma regra de fonte burocrática e imposta pela prática“, garante o advogado. “A lei diz repetidamente que a regra é o atendimento presencial, mas na prática burocrática dos serviços é isso [marcação prévia] que acaba por suceder.”
Pereira de Miranda denuncia que este tipo de condicionamento – uma repartição pública não ter portas abertas – é ilegal. “A lei dizia até há um ano e meio atrás que a regra passava a ser o atendimento com pré-agendamento e não aberto a quem surgisse. Essa lei, que previa o ‘estado de emergência’, já não está em vigor há um ano e meio. A 30 de setembro foi publicado outro diploma que revogou todas essas disposições excecionais“, afirma.
Ou seja, de acordo com o presidente da ProPública, é uma prática ilegal porque se baseia numa lei já revogada. E é inconstitucional porque viola os artigos 266.º e 267.º da Constituição da República Portuguesa, “uma vez que o serviço da administração é contínuo e serve para prover a necessidade de um serviço do interesse público, que à partida é permanente”.
O Artigo 267.º da Constituição estipula que a Administração Pública seja “estruturada de modo a evitar a burocratização, a aproximar os serviços das populações e a assegurar a participação dos interessados na sua gestão efetiva, designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de moradores e outras formas de representação democrática”.
Pereira de Miranda vai mais longe e diz mesmo que as medidas que estão em prática até “podem constituir os próprios agentes administrativos em responsabilidade civil por causa da denegação de um serviço público“.
Questionada pelo Polígrafo, fonte oficial do gabinete do secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa, Mário Campolargo, que tutela a gestão da rede de Lojas de Cidadão, assegura que os cidadãos podem recorrer aos serviços de atendimento das Lojas de Cidadão de duas formas. A primeira opção é “dirigir-se, presencialmente, a uma das Lojas de Cidadão, retirar a senha referente ao serviço pretendido e aguardar o respetivo atendimento“.
A segunda pressupõe que “antes de se dirigir à Loja de Cidadão, retire uma senha eletrónica, no Mapa de Cidadão, disponível através da app ou em ‘eportugal.gov.pt'”. A mesma fonte assinala que “sobre os demais organismos que fazem atendimento ao público deverão ser contactadas as áreas respetivas”.
Por sua vez, também contactada pelo Polígrafo, a Autoridade Tributária (AT) informa que, ao nível do atendimento presencial, “tem vindo a privilegiar o atendimento por marcação. Em 2022 foram disponibilizadas cerca de 5 milhões de vagas de atendimento presencial, das quais permanecem ainda disponíveis para agendamento nos meses de novembro (segunda quinzena) e dezembro cerca de 450.000 vagas de atendimento presencial”.
Além disso, a AT garante que as instruções em vigor para os serviços de Finanças “prevêem que seja prestado atendimento presencial sem necessidade de recurso a marcação prévia, sempre que a natureza da questão a tratar pelo contribuinte seja compatível com a prestação imediata do serviço, por exemplo, a receção de requerimentos e outros documentos e a emissão de certidões automatizadas”.
Ou seja, os atendimentos que a AT classifica como de maior complexidade – que exijam recolha e tratamento de informação, assim como o estudo prévio de processos ou procedimentos anteriores – “devem em regra ser previamente agendados“. Em causa estão, por exemplo, a atribuição de número de contribuinte ou a participação de óbito. A mesma fonte defende que estas instruções implementam o previsto no Decreto-Lei n.º 135/99 que define os princípios gerais de ação a que devem obedecer os serviços e organismos da Administração Pública na sua atuação.
Em declarações ao Polígrafo, António Godinho, membro da direção do Sindicato Dos Trabalhadores Da Administração Pública (SINTAP), realça que “as disfunções na AT depois da pandemia são muitas“.
“Nos serviços de Finanças, embora isso não seja explícito na legislação ou em instrução administrativa, muitos dos contribuintes que se deslocam para atendimento presencial sem marcação não são atendidos e acabam por ser obrigados a fazer marcação para dois meses depois“, garante, especificando os casos da requisição do número de contribuinte por parte de cidadãos estrangeiros, que registam neste momento tempos de espera elevados.
O dirigente sindical entende que as instruções em vigor estão desadequadas e fora do quadro legal em vigor. “Como sabemos, todos os despachos e decretos-lei da pandemia já foram revogados e estamos a laborar com instruções ainda do tempo da pandemia. Ou seja, de alguma forma, fora da legalidade“.
Questionado sobre se este tipo de atendimento por marcação já existia antes da pandemia, Godinho explica que a “marcação por agendamento, numa determinada hora e num determinado local, era praticamente inexistente“. A maioria das pessoas não recorria a este instrumento, “porque se deslocavam à repartição e eram atendidas, fosse qual fosse o assunto”.
Além disso, não tem dúvidas de que o atendimento por marcação “traz muitos problemas para a burocracia, de falta de eficiência e de eficácia no atendimento, bem como da resolução das questões”. E contrapõe: “Se o atendimento fosse feito presencialmente, espontâneo e sem marcação, não existia este tempo de espera e as pessoas eram atendidas na hora, esta burocracia e tempo de espera não existia antes.”
Para Godinho, “não é aceitável num Estado democrático a AT ou outro serviço ter este comportamento para com os cidadãos”. Alega ainda que houve um “aproveitamento da pandemia e das suas regras, que na altura faziam sentido no contexto da salvaguarda da saúde pública”, mas que agora “manter-se este statu quo quando não é justificável e só estamos a prejudicar os cidadãos que ficam sem o atendimento espontâneo, não é de todo aceitável, diria até que é ilegal“.
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Avaliação do Polígrafo:
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