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| - Tudo começa com um medicamento que trata um sintoma de tristeza ou depressão, depois vem outro e outro e mais outro e, no final, são mais de 15 as substâncias entretanto receitadas e cujos efeitos secundários debilitaram ainda mais a saúde do paciente, em comparação com o estado inicial. Esta história surge descrita em múltiplas publicações no Facebook que se tornaram virais, acumulando milhares de partilhas em conjunto.
Eis a transcrição de uma passagem do texto que é replicado nas publicações em causa: “Se você tem uma depressão uma tristeza meio persistente: prescreve-se FLUOXETINA. A Fluoxetina dificulta seu sono. Então, prescreve-se CLONAZEPAM, o Rivotril da vida. O Clonazepam o deixa meio bobo ao acordar e reduz sua memória. Volta ao doutor ele nota que você aumentou de peso. Aí, prescreve SIBUTRAMINA”, começa a enumerar o autor da publicação. A história prossegue até que “aos 40 e poucos anos, você já toma: FLUOXETINA, CLONAZEPAM, LOSARTANA, ATENOLOL, POLIVITAMÍNICO de A a Z, OMEPRAZOL, DOMPERIDONA, LAXANTE “NATURAL”, SILDENAFIL, VARDENAFIL, LODENAFIL ou TADALAFIL, NEOSALDINA (ou “Neusa”, como chamam), GINKGO BILOBA, METFORMINA e SINVASTATINA (convenhamos, isso está muito longe de ser saudável!). Mil reais por mês! E sem saúde!!!”
Vários utilizadores do Facebook denunciaram estes conteúdos como sendo fake news. Confirma-se?
O Polígrafo questionou profissionais da área da Saúde para verificar se o cenário descrito no texto em causa é real ou possível de acontecer. “Aquele texto para mim não tem sentido nenhum. Não acredito que aquilo possa acontecer seja onde for no mundo”, sublinha Alexandrina Ferreira Mendes, professora de Farmacologia na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Na perspetiva de Ferreira Mendes, este género de publicação nas redes sociais é perigoso porque “alguém que leu aquilo e está a tomar um daqueles medicamentos, se calhar ficou a pensar que vai ter aquela lista toda de desgraças“.
“É verdade que aqueles fármacos referidos têm efeitos adversos, mas não é assim que um médico prescreve”, ressalva Ferreira Mendes. No texto das publicações, “o que se fez foi pegar num fármaco, ver os efeitos adversos e tomá-los, não como um risco, mas como uma consequência inevitável. A pessoa toma aquele medicamento e inevitavelmente tem um determinado efeito adverso que se vai tentar colmatar administrando outro fármaco, que por sua vez tem outros efeitos adversos. Não é isto que se faz na prática clínica. Não se trata um efeito adverso com outro fármaco. Muda-se de fármaco. Mas para a mesma situação inicial”, explica.
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“Não é isto que se faz na prática clínica. Não se trata um efeito adverso com outro fármaco. Muda-se de fármaco. Mas para a mesma situação inicial”, explica Alexandrina Ferreira Mendes, professora de Farmacologia na Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra.
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Quando um paciente procura um médico e lhe apresenta os sintomas que tem, então começa a fase do diagnóstico. No entanto, o processo não é assim tão direto e o médico precisa de conhecer mais do que apenas os sintomas. É necessário conhecer a história clínica e fazer um exame objetivo. “Vai-se obtendo informação e começa a surgir um conjunto de hipóteses de diagnósticos na cabeça do médico que depois podem ter várias abordagens”, esclarece por sua vez Miguel Castelo-Branco, diretor do curso de medicina da Universidade da Beira Interior e médico no Centro Hospitalar da Cova da Beira. Se for suficientemente claro para o médico qual o possível diagnóstico, avança-se para a abordagem terapêutica, “com ou sem medicamento“, uma vez que existem diferentes abordagens terapêuticas.
Durante este processo é sempre tido em conta se o paciente está a tomar alguma medicação previamente receitada – e qual a medicação -, de forma a despistar possíveis iatrogienias, ou seja, efeitos secundários. “Nesse caso, se se tratar de iatrogenia, a solução é relativamente simples: substituir o medicamento, retirá-lo se for possível ou substituí-lo por outro que não cause essa iatrogenia“, afirma Castelo-Branco, recusando a hipótese de receitar um novo medicamento para tratar os efeitos secundários.
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Tratando-se de iatrogenia, “a solução é relativamente simples: substituir o medicamento, retirá-lo se for possível ou substituí-lo por outro que não cause essa iatrogenia”, afirma Miguel Castelo-Branco, diretor do curso de medicina da Universidade da Beira Interior, recusando a hipótese de receitar um novo medicamento para tratar os efeitos secundários.
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“O senhor diz que no meio daquela desgraça toda lhe receitaram dois medicamentos para a hipertensão. Um deles, de facto, pode causar impotência, mas isso sabe-se. É conhecido. Portanto é contra-indicado prescrever aquela família de medicamentos a homens. Qualquer médico sabe que não deve prescrever aquele medicamento a homens, só mesmo em situações de hipertensão grave, em que não se consiga controlar com outros medicamentos, é que se recorre àquele. Nunca na primeira linha”, assegura Ferreira Mendes, utilizando como exemplo um dos casos descritos na publicação. “Por isso é que há muitas classes de fármacos. Para a mesma situação temos geralmente muitas classes de fármacos diferentes. Se um não funciona adequadamente podemos tentar outro“, sublinha.
Além da questão do diagnóstico, existe outro problema associado a esta enumeração de medicamentos, segundo a farmacóloga: “O facto de um fármaco poder ter um determinado efeito adverso não significa que todas as pessoas o vão ter. Por isso é que é preciso médicos, senão nós íamos à lista e escolhíamos“.
“Os medicamentos existem para nos ajudar. Mas são medicamentos, são substâncias químicas, é verdade que têm riscos. Por isso é que têm de ser utilizados criteriosamente e de acordo com regras que estão bem definidas. Mas as pessoas têm de perceber que precisam deles”, acrescenta.
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Lista de medicamentos evocados com hiperligação para os respetivos folhetos informativos:
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Os efeitos secundários dividem-se em várias categorias que vão dos “muito frequentes” aos “muito raros“, passando pelos de “frequência desconhecida“. Esta classificação tem a ver com o número de ocorrências identificadas durante os testes clínicos elaborados. Nos folhetos informativos que acompanham todos os medicamentos estão identificados os possíveis sintomas causados segundo a sua probabilidade de ocorrência. “As pessoas são todas diferentes e, por isso, também não respondem da mesma maneira ao medicamento”, reitera Ferreira Mendes. “Não quer dizer, de maneira nenhuma – até pelo contrário -, que a pessoa ao tomar um determinado medicamento vá ter aqueles efeitos adversos todos. Nem pensar”.
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Por um lado, “a mensagem de que estamos a ser conduzidos para hábitos de consumo e uso excessivo de medicamentos, em prejuízo de estilos de vida saudáveis, é correta e está em linha com o melhor entendimento que nos é dado pelo conhecimento científico”. Por outro lado, “a publicação pode configurar um modo de alimentar ‘teorias de conspiração’, o que pode ser muito perigoso”, considera Jorge M. Gonçalves, professor na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto.
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Todos os profissionais questionados pelo Polígrafo classificaram a publicação viral em análise como uma hiperbolização da realidade. No entanto, Jorge M. Gonçalves, farmacologista e professor na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, considera que a caricatura tem dois lados que é preciso ter em conta. Por um lado, “a mensagem de que estamos a ser conduzidos para hábitos de consumo e uso excessivo de medicamentos, em prejuízo de estilos de vida saudáveis, é correta e está em linha com o melhor entendimento que nos é dado pelo conhecimento científico”. Por outro lado, “a publicação pode configurar um modo de alimentar ‘teorias de conspiração’, o que pode ser muito perigoso“.
“É obvio que a indústria farmacêutica aproveita esta ‘necessidade'”, prossegue, mas também é perigoso desenvolver teorias que “criam a ideia de que tudo o que a indústria farmacêutica faz é mau, logo tudo o que não tem selo da indústria farmacêutica é bom”.
Em causa estão os produtos naturais que têm sido apresentados à sociedade como alternativas à medicação tradicional e que, de acordo com os dois farmacologistas supracitados, carecem de regulação e práticas de segurança, podendo gerar mais riscos do que benefícios. “Um medicamento para chegar ao mercado tem que passar por ensaios clínicos extremamente rigorosos – não é numa pessoa ou duas, é em muitas -, até se ter a certeza de que o benefício é superior a eventuais riscos“, salienta Ferreira Mendes, acrescentando que “por vezes alguns desses produtos naturais têm mesmo riscos associados porque ninguém verifica a segurança deles”.
“Na Internet há muita informação que não é correta, mas também nem sempre é fácil de corroborar”, avisa Castelo-Branco, indicando que o papel do médico hoje em dia mudou porque “muitas vezes as pessoas, quando procuram o profissional, já têm um conjunto de informação – errada ou certa – que foram buscar algures, por vezes a fontes completamente erróneas e cheias de coisas que não são minimamente corretas. E que podem estar a influenciar a pessoa, portanto há aqui um trabalho de correção da informação que é importante que exista”. Castelo-Branco deixa um conselho: “Quando o doente tem dúvidas em relação a alguma coisa deve falar com o médico. E se é uma questão relacionada com medicamentos deve falar com o farmacêutico“.
Para Gonçalves, o problema já existe há muitos anos: “Nós temos um problema de iliteracia farmacêutica que vem do passado. Isto faz com que a forma como os cidadãos vêem os medicamentos seja de extremos: uns tomam mais medicamentos do que o necessário; outros cultivam uma posição quase extremista de desvalorização dos medicamentos e de tudo o que a indústria farmacêutica produz”.
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Nota editorial: este conteúdo foi selecionado pelo Polígrafo no âmbito de uma parceria de fact-checking com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam nessa rede social.
Na escala de avaliação do Facebook, este conteúdo é:
Falso: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
Na escala de avaliação do Polígrafo, este conteúdo é:
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