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| - Em setembro de 2020, o partido Chega submeteu o Projeto de Lei 531/XIV – “Pela proteção do bem-estar animal em contexto de abate religioso” – na Assembleia da República, propondo uma mudança legislativa de forma a garantir que “no caso de abate religioso, o animal deva ser objeto de atordoamento antes da occisão, sendo a perda de consciência e sensibilidade, mantidas até à sua morte”.
A proposta visa reforçar a proteção do bem-estar animal em contexto de abate religioso, alterando a Lei 92/95, relativa à proteção dos animais, bem como o Decreto-Lei 113/2019, que assegura a execução do Regulamento (CE) 1099/2009, referente à occisão dos animais criados ou mantidos para a produção de alimentos, lã, peles, peles com pelo ou outros produtos, bem como à occisão de animais para efeitos de despovoamento e operações complementares.
Pedro Delgado Alves, deputado do PS e membro da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, emitiu um parecer relativo a este projeto, em dezembro deste ano. Nesse parecer, o deputado socialista sublinha a importância da liberdade religiosa, a par com o bem-estar animal e com a conformidade constitucional das restrições propostas, inferindo a presença de antissemitismo e islamofobia na proposta do Chega.
“Precisamente para que não haja confusão ou aproveitamentos espúrios, importa denunciar quem apenas manipula a questão com oportunismo, convocando um debate que vai afetar apenas comunidades minoritárias e acitar sentimentos de antissemitismo e islamofobia que não devem ter lugar no espaço público”, pode ler-se no documento.
Tanto no islamismo como no judaísmo, os animais devem ser abatidos na sequência de um corte na garganta, sem atordoamento prévio. Desta forma, é conseguida uma carne que cumpre com os ensinamentos e lei religiosa, numa prática ancestral e generalizada entre estes grupos. No cerne do processo de sacrifício, e segundo ambas as religiões, está o objetivo de levar o animal à inconsciência em segundos, para que a morte ocorra na sequência de uma hipoxia cerebral (falta de oxigénio no cérebro) e não por perda de sangue.
Em termos práticos, a constitucionalização desta lei implicaria uma articulação entre a tutela do bem-estar animal e a tutela de direitos fundamentais, como a liberdade de religião. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no artigo 10º, que “todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”. Este princípio geral encontra-se igualmente consagrado na Constituição da República Portuguesa, em cujo artigo 41.º se proclama que “a liberdade de consciência, religião e culto é inviolável”.
E no resto da Europa?
Ao Polígrafo, Delgado Alves explica que “o problema não é novo e tem-se colocado em vários países europeus ao longo das últimas décadas, essencialmente em torno das práticas de abate das comunidades judaicas e islâmicas que observam as práticas alimentares Kosher e Halal, respetivamente”.
A solução adotada pela maioria dos países parece consistir num equilíbrio entre os dois interesses, “reduzindo ao mínimo o sofrimento do animal no momento da occisão, atordoando-os imediatamente antes, durante ou depois do abate”, explica. Segundo o deputado, “a opção pela proibição é a que se revela mais inadequada, porque não procura qualquer tipo de conciliação prática entre o bem-estar animal e ritos religiosos – sendo uma solução absoluta, é penalizadora em absoluto também na dimensão de liberdade religiosa”.
O abate ritual de animais é permitido na França, na Alemanha, no Reino Unido, na Ucrânia e na Rússia, onde vive uma grande parte dos judeus da Europa. As diretivas europeias permitem exceções por razões religiosas e, na maioria dos países, as comunidades têm os seus próprios matadouros, onde seguem os seus costumes. Delgado Alves refere que “a maioria das iniciativas de proibição de abate ritual apresentadas na Europa surgiram a partir de partidos da família política do Chega e num contexto direcionado não apenas às comunidades judaicas, mas também às comunidades muçulmanas. A pretexto do bem-estar animal (que está ausente das preocupações do Chega a respeito de outros debates, como é o da tauromaquia) e sem qualquer esforço de inclusão ou compromisso, há duas comunidades particularmente afetadas, comunidades essas que, infelizmente, são alvo frequente de opções de discurso discriminatório”.
O deputado socialista ressalva ainda que “o parecer procurou fazer um levantamento detalhado do problema e do quadro de direito comparado, revelando que a maioria dos países onde a questão se colocou introduziu cláusulas de salvaguarda para o abate ritual, com regras próprias e tentativas de harmonização dos valores em presença. Os casos que chegaram aos tribunais são precisamente aqueles em que a opção foi a de proibição absoluta – caminho que se afigura incompatível com a necessidade de proteção da liberdade religiosa”.
Para ser discutido e votado em plenário, e segundo o mesmo parecer, o projeto apresentado pelo Chega terá que incluir um “pedido por escrito” à Comunidade Israelita de Lisboa, à Comunidade Israelita do Porto, à Comunidade Judaica de Belmonte, à Comunidade Islâmica de Lisboa, à Comunidade Muçulmana Ismaili, assim como ao Instituto Halal de Portugal. Por se constituir como a primeira iniciativa legislativa sobre a matéria, Delgado Alves aponta ainda como necessário “solicitar um parecer à Comissão da Liberdade Religiosa”.
Abate ritual na Alemanha
O antissemitismo e a perseguição aos judeus eram os princípios centrais da ideologia nazi na Alemanha. Nos 25 pontos do programa do Partido Nazi, publicado em 1920, era declarada a intenção de segregar os judeus da sociedade e de revogar os seus direitos civis, políticos e legais.
Neste sentido importa notar que em 1933, ainda antes da II Guerra Mundial, foi promulgada a lei que proibia o abate ritual no país, pelo que é verdade que o projeto de lei apresentado pelo Chega seja como que uma réplica da mesma.
Embora não fosse feita menção a qualquer religião, os judeus ficaram impedidos de seguir os preceitos religiosos de purificação ritual durante o abate dos animais, barrando assim o cumprimento das leis dietéticas judaicas. Assim sendo, é comummente inferido que esta lei tenha sido propositadamente imposta de forma a afetar a comunidade judaica, a par com todas as outras injunções.
Em 1941, a prática de abate ritual terá sido permitida apenas a soldados islâmicos e, depois de uma segunda proibição em 1995, a Alemanha voltou a aprovar o abate ritual às religiões que dele dependem, já em 2002.
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Avaliação do Polígrafo:
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