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| - Num discurso proferido durante o encerramento da Academia de Verão da Juventude do Chega, no último domingo, 28 de agosto, André Ventura comparou a vinda de imigrante para Portugal, e os respetivos apoios atribuídos pelo Governo, com a invasão espanhola de 1580. Lado a lado, ambos representam um “momento de risco da pátria”:
“Até quando fomos invadidos, até quando os espanhóis nos dominaram e escrevemos ‘Os Lusíadas’, até nesse momento tivemos coragem de pegar no bispo de Zamora, que estava na cidade de Lisboa, e atirá-lo lá de cima da torre. Não digo que façamos isto a António Costa… Mas já me pass… É que o nosso Parlamento é alto! Lá de cima, também… Mas reparem como tivemos essa força. É verdade, foi atirado da torre e depois foi dado de comer aos cães. Não é para terem ideias, mas nós estamos noutro momento de risco da pátria.”
Enquanto a plateia gargalhava e aplaudia o líder do Chega, as palavras de Ventura começaram logo a propagar-se nas redes sociais, por entre muitas críticas. A título de exemplo, no Twitter: “Aqui está a verdadeira face do Chega, que nos chega pelo André Ventura. Se não se concorda com alguém, pratique-se o homicídio. Isto é um deputado a apelar, entre risos, ao homicídio de um primeiro-ministro do seu país. Caro André, isto é inadmissível. Esperamos a sua demissão.”
Se as palavras de Ventura incomodaram alguns, outros dedicaram-se a analisar os factos históricos que evocou no discurso: “Não interessa para nada, mas o domínio espanhol começa em 1580 e ‘Os Lusíadas’ são publicados em 1572. Martinho de Zamora (que não era bispo de Zamora, mas de Lisboa) é linchado em 1383, não porque fomos invadidos, mas porque este se recusou a apoiar D. João como sucessor ao trono.”
Ora, de acordo com a definição da “Porto Editora“, a invasão do território português pelo exército espanhol “enquadrou-se na crise da sucessão gerada após a morte do cardeal D. Henrique, cujo sucessor legítimo era Filipe II de Espanha (1527-1598), que assim pretendia tomar o seu lugar na capital portuguesa”.
Ainda assim, a verdade é que o povo de Santarém se tinha adiantado e proclamou, a 24 de julho de 1580, como rei o D. António, prior do Crato e filho do infante D. Luís, uma governação que se estendeu por apenas 33 dias e que terminou com uma derrota face aos exércitos espanhóis. A “Guerra da Sucessão Portuguesa” foi assim travada entre 1580 e 1583, tendo sido vencida por Filipe II, que deu início à União Ibérica.
Mesma fonte, novo termo. O “célebre poema épico de Luís de Camões”, denominado “Os Lusíadas”, foi publicado em 1572, ou seja, pelo menos 28 anos antes da invasão espanhola. A obra narra “a descoberta do caminho marítimo para o Oriente por Vasco da Gama” e é “uma epopeia clássica, inteiramente fiel às regras e convenções impostas pelo género, tendo como fontes a Eneida, de Virgílio, e a Poética, de Marco Girolamo Vida, que teoriza sobre a epopeia”.
Quanto ao suposto “bispo de Zamora”, a verdade é que, por mais que lá tenham passado, nenhum parece ter sido atirado de uma torre. Martinho de Zamora, esse sim, bispo de Sines e de Lisboa, foi, segundo conta Fernão Lopes, vítima de um castigo popular:
A 6 de dezembro de 1383, na sequência do homicídio do conde de Andeiro, o bispo Martinho de Zamora proibiu que se tocassem os sinos da Sé de Lisboa, tendo-se fechado no interior da catedral, talvez suspeitando que algo lhe pudesse acontecer.
Diz Fernão Lopes que “a populaça, vendo que os sinos da Sé não repicavam, aproximou-se da catedral, cega de raiva”, tendo sido Silvestre Esteves, procurador da autarquia lisboeta, a inquirir o bispo sobre o porquê de os sinos não terem tocado. Martinho de Zamora disse ignorar os motivos pelos quais o devia ter feito.
A resposta fez soar os pedidos do Povo para que o bispo fosse atirado da ponte. Se não o fosse, seriam atirados todos aqueles que a ela tinham subido. Já morto, no terreiro da Sé, “ali o desnudaram de toda a vestidura, dando-lhe pedradas com muitos e feios doestos, até que se enfadaram dele os homens e os cachopos, e foi roubado de quanto havia. […] E em esse dia logo algumas refeces pessoas lançaram ao bispo, onde jazia nu, um baraço nas pernas, e chamando muitos cachopos que o arrastassem, ia um rústico bradando adiante: ‘Justiça que manda fazer nosso senhor o Papa Urbano Sexto, neste traidor cismático castelão, porque não estava com a Santa Igreja.’ E assim o arrastaram pela cidade, com as vergonhosas partes descobertas e o levaram ao Rossio, onde o começaram a comer os cães, que o não ousava nenhum soterrar. E sendo já dele muito comido, soterraram-no em outro dia ali no Rossio […], por tirarem fedor dentre as suas vistas”.
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