schema:text
| - Em diversos países e línguas, os meios de comunicação social noticiaram o caso de um homem norte-americano de 69 anos, internado nos cuidados intensivos devido à Covid-19, que teve uma erecção involuntária durante mais de quatro horas. Algumas dessas notícias e múltiplas publicações nas redes sociais difundiram a ideia de que o priapismo será um novo sintoma da Covid-19. Essa relação de causa/efeito está comprovada?
Questionado pelo Polígrafo, Mário Pereira Lourenço, médico urologista do Instituto Português de Oncologia de Coimbra Francisco Gentil (IPO), começa por sublinhar que o priapismo “é uma erecção involuntária com duração superior a quatro horas. É uma doença muito rara, com uma incidência muito muito baixa, que acaba por ser uma emergência urológica porque tem de ser tratada rapidamente para não ter consequências a longo prazo”.
Pereira Lourenço indica que o priapismo mais comum é o isquémico ou de baixo fluxo que resulta de um aprisionamento do sangue nos corpos cavernosos do pénis.
Dois casos de priapismo associado a casos de Covid-19 foram reportados e publicados na revista científica The American Journal of Emergency Medicine: o de um homem de 69 anos com obesidade; e o de um homem de 62 anos que tinha realizado anteriormente uma cirurgia à virilha esquerda e uma apendicectomia. Ambos os pacientes estavam internados em unidades de cuidados intensivos. Nos dois casos clínicos publicados é referido que existe uma associação entre o priapismo isquémico e a ocorrência de episódios tromboembólicos e de hipercoagulação, dois sintomas previamente identificados em casos graves de Covid-19.
Importa ressalvar que os artigos são relatos clínicos e não estudos científicos. Ou seja, são descrições de casos identificados que incluem todos os pormenores necessários para apresentar, nesta situação, um possível sintoma da doença. “As conclusões que se podem retirar de casos clínicos tão raros são muito discutíveis e o grau de evidência científica é por definição reduzido”, afirma Pereira Lourenço. Para que houvesse evidências científicas de que o priapismo é realmente um sintoma da Covid-19 seriam necessários mais relatos de casos, o que levaria à realização de estudos científicos controlados para que se pudesse identificar o que causa o fenómeno.
“O priapismo, em si, é raríssimo. Mas nós aqui também estamos a falar de um número muito, muito pequeno de casos clínicos que apontam o priapismo, para aquilo que é uma pandemia que já tem milhões de pessoas afetadas em todo o mundo”, ressalva. No entanto, Pereira Lourenço não descarta a existência de uma base científica teórica que justifique a ocorrência de priapismo em casos onde há um aumento do risco tromboembólico, como acontece nos estados mais graves da Covid-19. “O priapismo pode dever-se a complicações tromboembólicas e sabe-se que a Covid-19 provoca um estado de hipercoagulabilidade. Logo, pode haver um princípio teórico de que, formando trombos na vascularização peniana, isso possa provocar priapismo”, explica.
Também Pedro Bargão Santos, médico urologista no hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (conhecido como hospital Amadora-Sintra), indica ao Polígrafo que “nos doentes com Covid-19 existe esse estado aumentado pró-trombótico, de uma coagulação mais exagerada”, podendo corresponder a uma associação com o priapismo. Contudo, “as evidências ainda são poucas“, sublinha.
“Pode eventualmente ser uma consequência do estado grave da Covid-19. Estado em que há quase coagulação intravascular disseminada e que leva a um estado pró-trombótico em muitos órgãos. Mas, mesmo assim, o número de casos é baixo. Se isto fosse uma coisa mais generalizada, uma complicação mais importante, teria havido mais casos“, prossegue Bargão Santos.
Além do baixo número de casos reportados, há também outro factor associado à ocorrência de priapismo que deve ser tido em conta na análise: a administração de fármacos. Os dois doentes identificados nos casos clínicos estavam internados em unidades de cuidados intensivos e, por isso, estariam a receber um conjunto de fármacos, de acordo com o protocolo de tratamento da Covid-19.
“Há uma extrema confusão naquilo que aqueles doentes têm para se poder dizer que a causa do priapismo, nestes casos, foi a Covid-19”, afirma Pereira Lourenço, sublinhando que “alguém que está numa unidade de cuidados intensivos toma uma panóplia de fármacos. Se fizermos uma pesquisa de fármacos que podem causar priapismo, temos imensos, alguns certamente administrados nas unidades de cuidados intensivos”.
A raridade de casos reportados – dois em mais de 120 milhões de infeções confirmadas -, a par da existência de um conjunto de factores que influenciam a análise da situação, são impedimentos para que se possa concluir que o priapismo é um sintoma da Covid-19. Contudo, existe uma base teórica para a situação, uma vez que a ocorrência de priapismo está relacionada com situações pró-trombóticas que ocorrem em estados graves da doença.
“Eu acredito que não é necessário alarmar ninguém, nem haver grande preocupação em termos médicos. Os colegas que trabalham todos os dias com Covid-19, nas unidades de cuidados intensivos, saberão que eventualmente pode acontecer este tipo de complicações, mas que são raras e ocorrem em estados muito avançados da doença”, conclui Bargão Santos.
________________________________________
Avaliação do Polígrafo:
|