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| - “Também me oponho à desculpabilização sistemática dos que cometem atos legal ou moralmente condenáveis em nome da sua precariedade social ou da sua diferença étnica“. Estas são as palavras atribuídas a Augusto Santos Silva, recém-eleito Presidente da Assembleia da República, em várias publicações que surgiram nas redes sociais ao longo das últimas semanas. A fonte da alegada citação é uma edição do jornal “Público”, de 20 de março de 1997.
Não é disponibilizada qualquer informação adicional sobre o artigo em causa, ou explicado o contexto da citação exposta. Mas coloca-se em destaque uma outra frase proferida por Santos Silva na Assembleia da República, a 8 de abril, quando interrompeu o discurso de André Ventura e advertiu: “Senhor deputado, não há atribuições coletivas de culpa em Portugal.”
Na parte final do debate sobre o Programa do Governo, no dia 8 de abril, a intervenção de Ventura pautou-se por generalizações sobre as pessoas de etnia cigana. “O que nós não compreendemos é que a comunidade cigana sempre esteja tão pronta para ser aplaudida por este Parlamento”, afirmou, lamentando não ver notícias nos meios de comunicação social sobre “os ciganos que agrediram a GNR no Alentejo ou os bombeiros do Porto ou em Leixões. Esta capacidade de dizer que sim à comunidade cigana tem que acabar em Portugal“.
Foi então que Santos Silva interrompeu o deputado do Chega para recordar que “não há atribuições coletivas de culpa em Portugal”, sendo aplaudido por todo o hemiciclo, com a exceção da bancada do Chega. “Solicito-lhe que continue livremente a sua intervenção, como é seu direito, respeitando este princípio”, acrescentou.
Entretanto, nas redes sociais, aponta-se para uma suposta contradição ou hipocrisia: em artigo publicado em 1997, o mesmo Santos Silva terá escrito que se opunha “à desculpabilização sistemática dos que cometem atos legal ou moralmente condenáveis em nome da sua precariedade social ou da sua diferença étnica”.
O Polígrafo consultou a edição do jornal “Público” de 20 de março de 1997, disponibilizada pelo arquivo da publicação.
Na página nove surge o artigo de opinião em causa – “Lamento por nós e João Garcia” (pode consultar aqui) -, da autoria de Santos Silva, licenciado em História, doutorado em Sociologia e militante do PS desde 1990. Nesse texto apresentou os seus argumentos sobre um caso de tráfico de droga identificado num acampamento cigano que, em 1997, esteve envolvido em polémica devido à intensa condenação popular, prévia às detenções e condenações dos suspeitos.
“Há coisas que nos interpelam até ao fundo de nós mesmo. Senti-me assim com a notícia da descoberta de indícios de tráfico de droga e receptação no acampamento da família cigana cujo patriarca é João Garcia. Como seria fácil de prever, a prisão dos parentes de Garcia despertou o júbilo entre os que se tinham distinguido pelo apoio, exuberante ou discreto, às perseguições de que a comunidade foi vítima, em Vila Verde e Guimarães. Eles exigem agora que os ‘intelectuais’ que os criticaram se retractem e que o governador civil de Braga se demita, reconhecendo que teria andado a proteger um bando de malfeitores”, escreveu Santos Silva.
João Garcia era o líder da comunidade cigana de Oleiros que mais tarde, em 1998, foi considerado inocente pelo Supremo Tribunal de Justiça num caso de tráfico de droga.
“Não havia, até agora, nenhuma prova de conduta ilegal por parte dos ciganos malqueridos em Oleiros e, portanto, eles eram cidadãos titulares de direitos, credores do respeito e da proteção necessários. Aliás, mesmo que agora as provas se confirmem e a Justiça condene alguns, não perdem todos os seus direitos, e muito menos aqueles que as movimentações populares lhes estavam a negar”, sublinhou, considerando ainda que o sucesso da investigação policial mostrava que “a atuação nos termos da lei, além de ser a única legítima, é a mais eficiente”.
E acrescentou, em relação à aplicação da lei: “Quer do ponto de vista do equilíbrio quer do ponto de vista dos resultados, é sempre preferível à hostilização cega que cria suspeições alimentadas por preconceitos e pulsões xenófobas.”
“O princípio da conduta não tem, pois, de ser alterado. E parece ser claro e simples: à luz da Justiça, os comportamentos não dependem das pertenças étnicas, sociais ou religiosas das pessoas. (…) A construção do necessário equilíbrio entre, de um lado as movimentações primárias de grupos pouco treinados no exercício da cidadania e pouco menos que abandonados pelo Estado e a Administração, quando se sentem ameaçados do seu ‘exterior’, e, do outro lado, os quadros democráticos da ação coletiva e do relacionamento entre diferentes culturas compete, em primeiro lugar, aos eleitos e representantes locais. Por isso, insisto de novo: em toda esta triste história, o comportamento mais execrável tem pertencido aos dirigentes políticos e institucionais que patrocinam e alguns até incentivam os processos ilegais e desumanos de expulsão de comunidades inteiras“, criticou.
“Não ficaria, contudo, bem comigo mesmo se não acrescentasse que a confirmarem-se os factos evidenciados pela GNR, o senhor João Garcia e a sua família terão dado um rude golpe na causa cívica de todos quantos queriam protegê-lo, a ele e à sua gente, como cidadãos de um Portugal democrático. Não há que escondê-lo, tornar-se-à moralmente mais difícil e socialmente menos eficaz, levantar a voz contra a próxima suspeição lançada sobre acampamentos ciganos”, ressalvou Santos Silva.
É na sequência desta ideia que surge a citação que está agora a ser exposta de forma isolada nas redes sociais: “Não será razão suficiente para nos calarmos. Mas com a mesma convicção que me recuso a considerar inimputáveis populações em fúria perseguindo indiscriminadamente pessoas e me recuso a desculpar, em nome da insegurança, as pulsões racistas, também me oponho à desculpabilização sistemática dos que cometem atos legal ou moralmente condenáveis, em nome da sua precariedade social ou da sua diferença étnica.”
“Respeitar as pessoas significa, indissociavelmente, honrar e satisfazer os seus direitos e pedir-lhes contas dos cumprimentos dos seus deveres. Tratar as pessoas como iguais significa, antes do mais, colocá-las no mesmo plano de pertença a uma comunidade social e política em que todos são subscritores de um único pacto de convivência e cooperação”, concluiu.
A citação é autêntica, mas está a ser difundida de forma isolada e carecendo do devido contexto. Lendo o artigo na íntegra entende-se que Santos Silva não incorre numa qualquer generalização sobre as pessoas de etnia cigana, associando-as a uma maior predisposição para cometerem crimes.
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Avaliação do Polígrafo:
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