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| - “A visão política, a convicção política, os atos políticos de José Sócrates como primeiro-ministro e como secretário-geral do Partido Socialista, que era a ligação dele ao Parlamento (…), a visão política dele era de não combate à corrupção“, afirmou João Cravinho, histórico militante do PS e antigo ministro do Planeamento, Equipamento e Administração do Território (1995-1999) no primeiro Governo liderado por António Guterres, em entrevista ao Polígrafo SIC, emitida a 26 de abril.
“Houve um período da vida do Partido Socialista, que corresponde precisamente aos mandatos de José Sócrates, tendo em atenção que em boa parte desse período há uma maioria absoluta, em que o Partido Socialista, relativamente ao poder que tinha, não o exerceu senão em hostilidade, senão contra a possibilidade termos um sistema eficaz, bem organizado, coerente, lógico, sobretudo eficaz de combate à corrupção. Tudo isso foi liminarmente recusado pelo Partido Socialista”, vincou Cravinho, referindo-se ao Plano Anti-Corrupção que propôs em 2006.
“João Cravinho deve estar com a memória um pouco afetada. Por uma razão muito simples. Desde há muitos anos, há décadas, diria eu, quase praticamente toda a legislação que nós temos hoje no domínio da luta contra a corrupção foi aprovada pela mão do Partido Socialista. Mesmo durante o Governo de José Sócrates, o chamado ‘pacote Cravinho‘ foi praticamente todo concretizado“, retorquiu logo no dia seguinte Constança Urbano de Sousa, atual deputada do PS e antiga ministra da Administração Interna (demitida em 2017, na sequência dos incêndios de Pedrógão Grande), em declarações à rádio TSF.
Por sua vez, em entrevista ao jornal “Diário de Notícias” (publicada na edição de 2 de maio), questionado sobre as afirmações de Cravinho ao Polígrafo SIC – “O antigo ministro João Cravinho acusou José Sócrates de, enquanto primeiro-ministro, ter travado as propostas de combate à corrupção. Como é que comenta, tendo presente a proximidade e responsabilidade que tinha nesse Governo?” -, o primeiro-ministro António Costa respondeu da seguinte forma: “Nos 10 anos em que estive nesse Governo não me recordo que isso tenha acontecido, não sei em concreto a que se refere o engenheiro João Cravinho. Lembro-me, aliás, que esse Governo nomeou o engenheiro João Cravinho para administrador do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento. Não sei o que terá acontecido entre o engenheiro João Cravinho e o engenheiro José Sócrates”.
Qual dos intervenientes nesta controvérsia é que está com falhas de memória?
Recuemos até ao dia 24 de janeiro de 2007, quando se realizou um debate mensal com o primeiro-ministro José Sócrates em reunião plenária na Assembleia da República. Foi também o último dia de João Cravinho nas funções de deputado, a caminho do cargo de administrador do Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD), em Londres, por nomeação do Governo liderado por Sócrates. Quanto a António Costa, exercia na altura o cargo de ministro de Estado e da Administração Interna, ao qual renunciaria em maio de 2007 para se candidatar à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, em eleições intercalares.
Na intervenção de abertura, Sócrates focou-se exclusivamente no tema pré-definido do debate: as alterações climáticas. Contudo, na primeira ronda de perguntas, o deputado Luís Marques Mendes, então líder do PSD, aproveitou para abordar outros temas como o fim da obrigatoriedade das provas globais no 9.º ano de escolaridade e o combate à corrupção.
“No passado dia 5 de outubro [de 2006], o Presidente da República [Aníbal Cavaco Silva] fez um importante discurso ao país, lançando um apelo aos responsáveis políticos para um combate mais firme à corrupção. O que aconteceu de então para cá? Primeiro: o PSD apresentou uma proposta, em sede de Orçamento do Estado, para um reforço de meios no combate à corrupção no orçamento da Polícia Judiciária. O que fez a maioria e o Governo? Chumbaram! Sinal negativo. Segundo: corrupção no desporto. Foi preciso o PSD apresentar um projecto nesse domínio, propondo penas mais pesadas e um combate mais eficaz, para o Governo acordar. Um sinal muito negativo de lentidão. Terceiro: nas últimas semanas vieram a público notícias, oriundas do Ministério da Justiça, segundo as quais o Governo tem a intenção de acabar com o DCIAP – Departamento Central de Investigação e Ação Penal. É um sinal profundamente negativo de abrandamento da investigação e do combate à criminalidade económica e financeira”, afirmou Marques Mendes.
“Finalmente, neste domínio, o caso mais emblemático de todos é o que se prende com as propostas do deputado João Cravinho. Depois de meses de discussões internas no PS, obteve-se este resultado insólito perante todo o país: as propostas foram rejeitadas e o Partido Socialista, que é maioria, nem sequer permitiu o respetivo agendamento e discussão, quando estavam em causa contributos positivos para o combate à corrupção em Portugal. Não são propostas de um partido da oposição mas, sim, de um deputado da maioria! Aqui chegados, senhor primeiro-ministro, pergunto: por que é que o Governo, o Partido Socialista, a maioria hesitam tanto no combate à corrupção? De que é que têm receio? Não acham que este combate é importante e essencial? Quero dizer-lhe que, para mim, o combate à corrupção é uma prioridade; para o Governo, o PS e a maioria, o combate à corrupção parece ser um enorme incómodo. Isto preocupa-me. A corrupção tem de ser combatida com firmeza e sem hesitação, porque mina a economia, a democracia e a confiança das pessoas no Estado de direito democrático”, concluiu.
“Em matéria de corrupção, senhor deputado, em primeiro lugar, não lhe reconheço nenhuma autoridade moral para pretender que o seu partido combata ou queira combater mais a corrupção do que o Partido Socialista ou o Governo! Em matéria de corrupção, não baixe ao nível zero da política. Quero apenas recordar-lhe tudo o que fez a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Judiciária. E, já agora, lembro que a doutora Maria José Morgado foi nomeada pelo Procurador-Geral da República para uma investigação importante, e foi-o durante a vigência deste Governo. Durante a vigência do vosso Governo, a doutora Maria José Morgado teve de demitir-se da Polícia Judiciária”, começou por responder Sócrates.
“Senhor deputado, tenho o maior gosto em discutir todas as propostas do deputado João Cravinho, sem qualquer problema. O Grupo Parlamentar do Partido Socialista apresentará as propostas com as quais concorda. São propostas muito ambiciosas e que vão dar mais instrumentos legais para que as autoridades possam combater a corrupção. Mas teremos o maior gosto em explicar, nesta Assembleia, por que é que não estamos de acordo em pôr entre parêntesis o Estado de Direito para combater a corrupção. É que nós não nos esquecemos dos direitos fundamentais“, defendeu o primeiro-ministro.
“Não estamos de acordo em pôr entre parêntesis o Estado de Direito para combater a corrupção. É que nós não nos esquecemos dos direitos fundamentais”, afirmou Sócrates na Assembleia da República, a 24 de janeiro de 2007.
“Sobre a corrupção, o senhor primeiro-ministro escusa de se incomodar comigo”, respondeu Marques Mendes. “Não que me importe, mas escusa de se incomodar comigo, porque quem apresentou esse conjunto de propostas que parecem ter criado muito incómodo foi um deputado do seu partido. Como tal, ou se incomoda com ele ou incomoda-se consigo próprio, com a maioria, com o PS ou com o Governo. Verdadeiramente, o sinal que está a ser dado, nesta matéria como noutras que citei, é o de não haver vontade política séria no combate à corrupção, o que penso ser grave. (…) Mas, senhor primeiro-ministro, aquelas que refiro não são críticas da oposição. Ainda há dias vi, como viu todo o país, o deputado João Cravinho dizer que a impressão que passa para o exterior é a de que é incontroverso que há ‘rabos de palha‘ no PS. Não fui eu que o disse, senhor primeiro-ministro!”
“Incomodo-me com as suas insinuações, senhor deputado. São insinuações, sim! É porque eu levo as palavras a sério, senhor deputado! Ora, quando Va. Exa. insinua que o Governo ou o Partido Socialista não estão interessados em combater a corrupção, faz uma insinuação que levamos a sério”, contrapôs Sócrates. “Mais uma vez digo, porém, que não lhe reconheço qualquer autoridade moral para falar nessa matéria! (…) Mas o que me incomoda é o seu oportunismo. De facto, o senhor deputado não foi capaz de dizer o que pensa sobre duas das propostas de que estamos a falar. Na verdade, essas duas propostas, de acordo com o nosso ponto de vista, são erradas, porque põem em causa, em primeiro lugar e desde logo, os direitos fundamentais, o que nada justifica, e porque propõem a criação de entidades de combate à corrupção que pensamos que seriam negativas para o sucesso deste combate”.
“Percebamos uma coisa: eu não digo que o Governo queira combater a corrupção com mais afinco do que a oposição, mas o que não lhe reconheço, senhor deputado Marques Mendes, é autoridade moral para nos vir dar lições a esse respeito! Por outro lado, não quero que o senhor deputado desenvolva uma linha política de julgamento de intenções. Não nos confunda! Este Governo e este Partido Socialista não têm ‘rabos de palha‘, senhor deputado! Por isso, em matéria de corrupção, temos as nossas propostas e a nossa linha política. O combate à corrupção faz-se combatendo-a, que é o que estão a fazer a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Judiciária, como é da sua competência”, prosseguiu.
“O que não lhe reconheço, senhor deputado Marques Mendes, é autoridade moral para nos vir dar lições a esse respeito! Por outro lado, não quero que o senhor deputado desenvolva uma linha política de julgamento de intenções. Não nos confunda! Este Governo e este Partido Socialista não têm ‘rabos de palha’, senhor deputado! Por isso, em matéria de corrupção, temos as nossas propostas e a nossa linha política. O combate à corrupção faz-se combatendo-a”, declarou Sócrates, na mesma reunião plenária.
“Tudo faremos para melhorar o nosso quadro legal e para permitir a estas instituições melhores condições de atuação. Mas não melhoraremos este quadro legal com base em propostas com as quais não estamos de acordo. Isto, sim, é clareza! O resto é apenas um baixo oportunismo político que os senhores revelam ao anunciar que vão apresentar em vosso nome essas propostas”, concluiu o primeiro-ministro.
Mais à frente no debate, este mesmo tema voltaria a ser abordado pelo deputado Francisco Louçã, então líder do Bloco de Esquerda. “O senhor primeiro-ministro veio dizer que não aceita duas das propostas do deputado João Cravinho e sobre uma delas foi claríssimo: disse que é uma proposta errada e que põe em causa os princípios do Estado de direito. Quero dizer-lhe, senhor primeiro-ministro, que entendo que a corrupção é uma questão de emergência nacional. Estamos a um passo de aceitar que o dinheiro sujo da corrupção se sobreponha ao império da lei, pelo império da brutalidade ‘ganguesteril’. Sabe – e tem, certamente, a mesma preocupação que eu – que, quando o doutor Ricardo Sá Fernandes denuncia a Bragaparques num caso de corrupção e a sua casa e o seu escritório são assaltados há um risco de ‘ganguesterização’ que nos afeta a todos e à democracia. Sabe que, quando uma Câmara Municipal tão importante é investigada, isso exige toda a transparência que a justiça possa trazer para o esclarecimento dos crimes. Portanto, não pode haver hesitação nestas matérias”, sublinhou o bloquista.
“Ora, senhor primeiro-ministro, creio que a resposta que nos deu é, ela própria, errada sobre a medida do enriquecimento ilícito. E não o digo aqui por ser o último dia da presença no Parlamento do deputado João Cravinho. Sobre outras propostas, não estando de acordo com ele, assim o diremos”, prosseguiu Louçã. “Respeitamos os adversários e todos os parlamentares, nas convergências e nas divergências. Mas, senhor primeiro-ministro, o enriquecimento ilícito deve ser punido e tal não põe em causa o Estado de Direito. Pelo contrário, a diferença entre um Estado policial que aponta sem saber e um Estado que preser-va o direito de defesa tem de ser assegurada. Mas a nossa lei, senhor primeiro-ministro – veja, por exemplo, o Artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária -, já prevê a inversão do ónus da prova. Porquê? Porque é para isso que fazemos cruzamento de dados. Já está na lei a obrigatoriedade da inversão do ónus da prova quanto ao enriquecimento injustificado“.
“Do que se trata – e estamos completamente de acordo – é de tirar consequências, para a investigação criminal, daquilo que o fisco sabe, porque sei que a corrupção se apanha com a mão na massa e, se é um crime, tem de ser investigada como crime. Portanto, senhor primeiro-ministro, não levante bandeiras da República para impedir um bom princípio. Porque o que o PS tem feito, isso, sim, é impedir, por exemplo, o levantamento do segredo bancário, é impedir a obrigatoriedade da declaração de transferências de fundos para as offshore. A tudo isso, o PS opõe-se completamente, e opõe-se completamente a um princípio de transparência. Deixo-lhe, então, a este respeito, uma pergunta: vai ou não a maioria aceitar que sejam agendadas as ‘propostas Cravinho‘, para aqui serem discutidas? Gostava de ouvir a sua resposta”, concluiu.
“Fui educado nos bons princípios de que se é inocente até prova em contrário. O senhor deputado, pelos vistos, no domínio do enriquecimento ilícito acha que deve ser-se culpado até prova em contrário. Não acompanho essa proposta”, defendeu Sócrates, em resposta a Louçã.
“Nesta matéria, discordo de si”, respondeu Sócrates. “Não estou de acordo que haja, em Portugal, uma situação que exija que todos nós coloquemos agora o Estado de Direito entre parêntesis para que assumamos que um princípio estruturante desse Estado, que é o da inocência até prova em contrário, possa ser levantado em matérias deste tipo. Não estou de acordo, senhor deputado! Fui educado nos bons princípios de que se é inocente até prova em contrário. O senhor deputado, pelos vistos, no domínio do enriquecimento ilícito acha que deve ser-se culpado até prova em contrário. Não acompanho essa proposta. E, senhor deputado, sejamos sérios… É disso que se trata, não é de penalizar o enriquecimento ilícito!”
“Senhor deputado, já assisti a muita asneira feita com precipitação, sem garantir os direitos fundamentais, que acabou por se transformar num instrumento contra o Estado democrático e contra a democracia. Não alinho nisso, senhor deputado! Não alinho em asneiras! E considero isso uma asneira, ou, melhor dito, é um erro“, sublinhou.
“Tal como considero um erro – e o senhor deputado teve o cuidado de não se pronunciar sobre essa questão – fazermos, a propósito da matéria da corrupção, a pulverização de instituições: temos a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Judiciária, cada uma delas com as suas competências, mas vamos formar mais uma instituição, uma ‘alta autoridade’ (não sei qual a designação, não estou familiarizado com os termos concretos dessa proposta). Não estou de acordo com isso (…). O senhor deputado quer que as propostas do senhor deputado João Cravinho sejam discutidas? Pois, com certeza! Nós queremos discutir tudo e com a maior abertura; porém, não são propostas do Partido Socialista. As propostas do Partido Socialista vinculam todo o Grupo Parlamentar e aquelas que vão ser apresentadas por este são as que consideramos boas para o combate à corrupção“, finalizou.
“O senhor deputado quer que as propostas do senhor deputado João Cravinho sejam discutidas? Pois, com certeza! Nós queremos discutir tudo e com a maior abertura; porém, não são propostas do Partido Socialista. As propostas do Partido Socialista vinculam todo o Grupo Parlamentar e aquelas que vão ser apresentadas por este são as que consideramos boas para o combate à corrupção”, distinguiu Sócrates.
Nesse mesmo dia 26 de janeiro de 2007, no jornal “Público” destacava-se uma entrevista precisamente a João Cravinho, apresentada da seguinte forma: “Sai com a consciência de ter ‘plantado uma árvore’ na agenda política. Horas antes de o primeiro-ministro ter atacado as suas propostas no Parlamento, na quarta-feira [24 de janeiro de 2007], chegando a considerá-las ‘asneiras‘, João Cravinho falou ao ‘Público’ dos bastidores da longa negociação do seu pacote anti-corrupção, que acabou por ser praticamente todo chumbado pelo seu partido“.
Questionado sobre se, ao renunciar ao mandato de deputado, “não deixa cair a sua causa”, Cravinho respondeu: “Não deixo cair a minha causa por duas coisas: esgotei os meus poderes pessoais e saio com a certeza absoluta, factual, que meti na agenda política um tema que não estava lá, que é fundamental para a democracia e que não vai sair tão cedo. Ninguém pense que um tema destes é possível fazê-lo desaparecer, é possível escamoteá-lo, dominá-lo como se fosse um tema secundário. Isto é dos temas mais graves e mais importantes do regime democrático”.
“Como é que vê as resistências que sabe que houve às suas propostas, nomeadamente da parte do ministro da Justiça? Vejo-as como infundadas e prejudiciais ao PS, ao Governo e à democracia“, lê-se na entrevista.
Cravinho viria a exercer funções no BERD entre 2007 e 2011, sendo na altura substituído pelo economista Abel Mateus. Mais tarde, em dezembro de 2014, no decurso de uma entrevista à RTP, recordou que o Plano Anti-Corrupção que apresentara em 2006, travado pelo PS, ficou pelo caminho porque “não houve a menor vontade politica de levar aquilo para a frente“.
A legislação atual, disse Cravinho na altura, tem várias lacunas e é muito exigente na demonstração de prova de crimes de corrupção. Se o seu Plano Anti-Corrupção tivesse sido aprovado, realçou, a situação seria “totalmente diferente”, porque neste momento o que ainda existe é um “conglomerado de medidas avulsas que, por vezes, deixam imensos buracos pelo meio – muitas vezes propositadamente, não tenho a menor dúvida sobre isso”.
E por que não foi aprovado? “Muito simples. Porque não havia vontade política para combater a corrupção. (…) Não estamos na Sicília, nunca fui confrontado com nenhuma ameaça direta”, mas “fui travado de todas as maneiras e feitios. (…) Não houve a menor vontade política de levar aquilo para a frente. Ponto final parágrafo”.
Confirma-se assim que a versão mais próxima do que realmente aconteceu em 2006/07 é a de Cravinho, apesar das afirmações em sentido contrário (e errado) de Urbano de Sousa e Costa.
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Avaliação do Polígrafo:
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