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| - No dia 20 de junho, em entrevista à rádio TSF e “Jornal de Notícias”, Edmundo Martinho assegurou que “não há nenhum indicador que aponte para dependência patológica da raspadinha“.
Perante a referência a estudos da Universidade do Minho que comprovaram o aumento da dependência em relação ao jogo da raspadinha em Portugal, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e coordenador da Comissão de Estratégia Nacional de Luta contra a Pobreza sublinhou que “estudo recente só há um. É o estudo que foi libertado em maio pelo SICAD“.
“Uma coisa são alertas, outra coisa são estudos. Aquilo que temos conhecimento é de uma carta ao editor que alguns desses investigadores fizeram a uma revista da especialidade, internacional, uma revista conceituada. Não corresponde a um estudo. Corresponde basicamente àquilo que é a experiência individual destes investigadores naquilo que é a sua prática profissional para além do ensino, e do contacto que aparentemente terão tido com algumas situações de jogo excessivo e até patológico. Portanto, estudo não conhecemos, tanto mais estão anunciados vários, mas não deixa de ser curioso, desculpem-me este desabafo, que se tem vindo a anunciar estudos e simultaneamente os resultados que esses estudos vão obter, que é uma coisa curiosíssima do ponto de vista científico”, declarou Martinho.
“Não há nenhum indicador que aponte para dependência da raspadinha?“, perguntaram depois os jornalistas. Ao que o provedor da SCML respondeu que “dependência não, no sentido patológico. Aliás, se olharmos para aquilo que é o estudo do SICAD, que é o organismo público que tem responsabilidade de olhar para este assunto, no universo mais vasto dos jogos a dinheiro, a raspadinha é a que representa a taxa mais baixa do jogo patológico, curiosamente. E estou a referir-me aos dados do SICAD, nem sequer são dados da Santa Casa. Criou-se esta ideia de que é um jogo que se tornou viciante e, sei lá, patológico, sobretudo para os pobres, quando a distribuição de venda da raspadinha acompanha exatamente nos grupos da população aquilo que são os grupos de rendimento”.
Posteriormente na entrevista, Martinho afirmou também que “a relação dos jogadores com o tipo de jogos, de acordo com este estudo do SICAD, aponta que, nas pessoas que só jogam raspadinha, o jogo patológico representa 0,4% destes jogadores. Nas que não jogam raspadinha e que jogam outros jogos, online, jogos sociais, o que quer que seja, a prevalência do jogo patológico é de 1,5%, ou seja, é quatro vezes superior à daquelas que só jogam raspadinha”.
É verdade que não há nenhum indicador que aponte para “dependência patológica” do jogo da raspadinha em Portugal?
O estudo indicado por Martinho foi divulgado no dia 1 de junho. Elaborado pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) do Ministério da Saúde, destaca nas conclusões que “entre 2012 e 2017 a prevalência de jogo abusivo na população em geral quadriplicou (de 0,3% para 1,2%) e a de jogo patológico duplicou (de 0,3% para 0,6%). A raspadinha passou de terceiro para segundo jogo a dinheiro usado por mais pessoas no nosso país, sendo o mais mencionado no Inquérito Nacional ao Consumo de Substâncias Psicoativas na População Geral – Portugal 2016/17 (CICS.NOVA), depois do euromilhões”.
“O perfil dos jogadores de raspadinha, indica-nos que mais de metade são mulheres entre os 35 e os 54 anos, com habilitações relativamente baixas e rendimentos entre 500 e 1.000 euros mensais. Entre os jovens estudantes (15-24 anos) e pessoas com habilitação ao nível do ensino superior e rendimentos mais elevados, é menos comum jogar a raspadinha. Entre os jogadores de raspadinha, 96,5% são recreativos, 2,5% abusivos e 1% patológicos. A prevalência do jogo patológico é superior entre os jogadores que além da raspadinha jogam outros jogos não institucionais”, acrescenta-se.
Martinho alega que “no universo mais vasto dos jogos a dinheiro, a raspadinha é a que representa a taxa mais baixa do jogo patológico“, de acordo com os dados do SICAD. Mas os dados patentes no estudo do SICAD não permitem chegar a essa conclusão.
Entre as pessoas que só jogam raspadinha (e que jogam raspadinha e apenas outros jogos institucionais), de facto, a relação patológica com o jogo é identificada em 0,4%. Entre as pessoas que não jogam raspadinha, essa percentagem de relação patológica aumenta para 1,5%. Mas entre as pessoas que jogam raspadinha e outros jogos, incluindo não institucionais, aumenta ainda mais para 3,2%.
A partir destes dados não é possível inferir que a prevalência do jogo patológico na raspadinha seja inferior em comparação com outros jogos, na medida em que não há dados específicos sobre cada um desses jogos, apenas valores globais.
Na caracterização dos jogos dos jogadores patológicos, aliás, apenas 3,3% indica dedicar-se exclusivamente à raspadinha, mas juntando as categorias “raspadinha e apenas outros jogos institucionais” (11,8%) e “raspadinha e outros jogos incluindo não institucionais (39,3%) totaliza-se mais de metade (54,4%) do universo de jogadores patológicos. Ou seja, mais de metade dos jogadores patológicos também se dedica à raspadinha.
Outro elemento a ter em conta é que, na caracterização dos jogos dos jogadores abusivos, a percentagem na categoria “só raspadinha” aumenta para 9,2%. Juntando as categorias “raspadinha e apenas outros jogos institucionais” (31,6%) e “raspadinha e outros jogos incluindo não institucionais (25,7%) totaliza-se cerca de dois terços (66,5%) do universo de jogadores abusivos. Ou seja, cerca de dois terços dos jogadores abusivos também se dedica à raspadinha.
Além de se cingir aos jogadores que se dedicam exclusivamente à raspadinha e à relação de nível patológico, esquecendo os números referentes à acumulação da raspadinha com outros jogos e à relação de nível abusivo, Martinho faz questão de destacar uma percentagem isolada – “nas pessoas que só jogam raspadinha, o jogo patológico representa 0,4% destes jogadores” – que induz a ideia (enganadora) de número residual de jogadores patológicos de raspadinha.
É uma ideia enganadora, ou mesmo falsa, desde logo porque se trata do “segundo jogo a dinheiro usado por mais pessoas no nosso país”, logo após o euromilhões, com uma prevalência de 30,8% no conjunto da população.
Como tal, a percentagem de jogadores patológicos de raspadinha não equivale em números absolutos à percentagem de jogadores patológicos de corridas de cavalos, poker ou casinos, entre vários outros jogos com prevalência inferior a 10% do conjunto da população. A mesma percentagem corresponde a números absolutos muito distantes.
Na verdade, a percentagem de jogadores patológicos de raspadinha não corresponde a um número residual. Aliás, no estudo do SICAD destaca-se que 1% dos jogadores de raspadinha são patológicos, correspondendo a 24 mil pessoas. Mais, 2,5% dos jogadores de raspadinha são abusivos, correspondendo a 60 mil pessoas.
De resto, o jogo da raspadinha destaca-se também como aquele que apresenta uma maior percentagem de pessoas que declaram jogar “mais de uma vez por semana” (3,6%), o que também pode ser interpretado como um indicador de maior dependência.
Importa ainda salientar que estes dados resultam de um inquérito desenvolvido entre 2016 e 2017, há cerca de quatro anos. Mais recentemente têm surgido vários sinais de alerta no sentido de que a dependência e a relação patológica com o jogo da raspadinha ter-se-ão agravado nos últimos anos, desde psiquiatras avisando que “há cada vez mais viciados da raspadinha nos centros de apoio a toxicodependentes” e que “a dependência deste jogo cresceu ‘muitíssimo‘ e já o comparam ao álcool”, até ao referido artigo (desvalorizado por Martinho) de investigadores da Universidade do Minho salientando que “em média, os apostadores portugueses gastam por ano, neste jogo [da raspadinha], 11 vezes mais do que, por exemplo, os espanhóis“.
Em suma, ao contrário do que afirmou o provedor da SCML, há diversos indicadores que apontam para “dependência patológica” do jogo da raspadinha. Desde logo no estudo do SICAD em que se indica a existência de 24 mil jogadores patológicos de raspadinha em Portugal, além de 60 mil jogadores abusivos.
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Avaliação do Polígrafo:
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